(7ª Dimensão)
DEFUNTO (Elucubrando...): Enquanto a ambulância do Seguro-Saúde
JUNTOS PARA SEMPRE não chega, percebo o que acontece além das paredes. É
inevitável e não sei explicar a razão, mas estou vendo e ouvindo o que
acontece no apartamento do vizinho paramédico que me socorreu. Estão
conversando e discutindo, “Deus saberá”.
COMPANHEIRA (sem desgrudar
os olhos da TV): Quem estava gritando?
VIZINHO (reentrando em
casa): A mulher do dramaturgo aí ao lado, a dona Isadora, o coitado sofreu
um derrame e teve um enfarte violento... Ainda tentei reanimá-lo...
COMPANHEIRA: Que chatice! Homem é tudo igual, nós mudamos há poucas
semanas pra aqui e você já sabe até o nome da vizinha! Agora sossega aí
que já vai começar a novela.
VIZINHO: Um cara morre a dois passos
daqui, o país na beira do Apocalipse, e você só pensa em novela?!
COMPANHEIRA: Ô profeta do asfalto, não esquece que exportamos telenovelas
para dezenas de países!
VIZINHO: Pena os nossos representantes no
Congresso em Brasília não irem junto!
COMPANHEIRA: Mal-agradecido!
Cospe no prato que comeu! E já esqueceu que você era um reles suplente de
barbeiro do Senado e se aposentou com uma inacreditável aposentadoria de
trinta salários-mínimos!
VIZINHO: Meus diplomas de sociólogo, de
economista, de auxiliar de enfermagem e de paramédico abriram caminhos.
Fui barbeiro do Senado por vícios da politicagem de Brasília… e o homem é
sempre produto do seu meio e do seu tempo.
COMPANHEIRA: Tudo sem
esforço! Quero ver você largar a bebida e escapar da decadência!
VIZINHO: Sou decadente como a maioria das classes médias, mas faço a minha
parte.
COMPANHEIRA: Parte? Receber o contracheque no fim do mês,
escrever ensaios imaginários e esvaziar garrafas!
VIZINHO: Faço
sim, critico o abismo galáctico entre as nossas leis penais e a realidade
violenta do dia-a-dia.
COMPANHEIRA: Sociólogo de botequim! Vivemos
num paraíso, os estrangeiros que vêm aqui ficam loucos com o nosso povo,
com a liberdade de todo mundo fazer o que bem entende!
VIZINHO: É…
a meia dúzia que consegue sobreviver à violência urbana, suburbana, da
periferia, e interiorana! Que consegue sobreviver à artilharia da
bandidagem!
COMPANHEIRA: Derrotista!
VIZINHO: Sabia que
caminhar ao ar livre, ou pedalar na bicicleta nem mais esse direito temos
hoje! Bandidos armados, maiores e menores, fazem arrastão por toda parte!
COMPANHEIRA: Nossa democracia não é perfeita, mas nossos direitos
estão todos lá na Nova Constituição!
VIZINHO: Direito não vale nada
aqui! Nossa democracia foi feita em forno de microondas, ungida e
empacotada pelas elites pra atender o momento das oligarquias dominantes,
empreiteiros da vez e seus comparsas de partidos políticos vendidos — as
falanges sindicalistas manipuladoras do aparelho administrativo do estado!
COMPANHEIRA: Chega de discurso de jornalista da oposição fajuta!
Agora vai entrar o último anúncio comercial, acabou-se o teu tempo pra
xaropadas sociológicas.
VIZINHO: O desgosto afundou meu imaginário,
deixou de fora uma anteninha sentimentaloide, cercada de miséria e
assaltos por todos os lados.
COMPANHEIRA: Miséria? Assaltos? Só se
for a miséria e os assaltos mostrados pelos telejornais e que você vê
refestelado no sofá, no bem-bom do ar condicionado e com o copo de uísque
12 anos na mão. Nem cachaça você bebe!
VIZINHO: Miséria moral! Até
agora reagi rascunhando ensaios e desabafando com você, professorinha de
alunos do primeiro grau nos subúrbios satélites de Brasília, promovida a
manicure da Câmara dos Deputados, e tudo graças aos meus contatos
políticos!
COMPANHEIRA: Cafajeste!
VIZINHO: Vou largar tudo
isso e me alistar num balcão de esperança, nesses novos partidos do Bem
que estão criando!
COMPANHEIRA: No Brasil já há dezenas e dezenas
de partidos políticos e se tiver fila para o alistamento você vai
desistir!
VIZINHO: Cansei! Não é possível as coisas piorarem sempre
e tudo terminar em Pizza!
COMPANHEIRA: Intelectuais têm mania de
denunciar, mas não resolvem nada. Aqui, no Brasil, até hoje, só generais
resolveram alguma coisa! Infelizmente ficaram fora de moda, mas... como
tem moda que vai e volta…
(VÁCUO – Tipo assim... Intervalo)
DEFUNTO (Elucubrando...): Que transtorno eu ter despencado em plena
sala de visitas, isso lá é lugar de cair, desarrumando a decoração da
casa? Foi a primeira coisa que minha mulher pensou. Na ordem da casa. A
desordem geral no país ninguém quer ver, ou presume que não tem jeito,
pois “pau que nasce torto não endireita mais”. E se houve pau que nasceu
torto foi o tal do pau-brasil! O país já nasceu dentro do penico das
monarquias ibéricas, com aqueles tratados de merda, onde os meridianos
demarcadores dos territórios eram soprados pra cá e pra lá com arrotos e
peidos da nobreza. Porra! Lá estou falando, de novo, como se estivesse no
palco!
Hoje, o Brasil padece sob o manto corrupto do liberalismo
sindical! Melhor voltar ao meu problema. E como eu pensava, meu corpo ter
caído sobre florões rubros de raro Kashan do século XIX acabou enobrecendo
meus estertores. No involuntário movimento derrubei a banqueta onde
pousava antigo vaso chinês de bojo arredondado e cor turquesina – na
Antiguidade, era o matiz que simbolizava a ressurreição.
Na verdade, o
adorno rolou sem nenhum dano sobre meu corpo estendido e estancou junto a
minha cabeça. Foi a última coisa que com os olhos vi — ideogramas ladeando
crisântemos. Ao despencar, o vaso desvencilhou-se da base redonda
trabalhada em maciço pau rosa do sudoeste chinês. Rodopiando, a peça
enviesou sob o sofá e subtraiu-se das vistas. Quanto ao vaso, ficou de pé,
reluzindo sob facho de luz fugidia versos grafados há séculos.
Reconheço que é terrível essa fragmentação dos fatos, das coisas, do
entorno. Essa descontinuidade na sucessão dos atos. Mas acho que deve ser
essa a perspectiva dos mortos. Ao menos até aqui parece que é.
Contudo, a vida pós-moderna não ficou exatamente assim? Se ninguém nota é
porque todos estão concentrados no seu caleidoscópio interior, no seu
celular de última geração, nos novos aplicativos que surgem a todo
instante, ou naquilo que atende exclusivamente por “Eu” há milhares de
anos.
Quanto a mim, tirante a elucubração sobre o Brasil político,
acho que atingi estágio superior e, agora, me integro à consciência
cósmica. A tudo compreendo: que não há em cima nem embaixo, dentro ou
fora, claro ou escuro, futuro ou passado. Tudo é uno. Mudar é que
estabiliza. Princípio e fim se encontram em desguios perdidos. Sei que não
estou morto, apenas já fui vivo! O pior de tudo é essa dúvida: morri mesmo
ou estou sonhando que morri?
BERTHOLD BRECHT (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): “De todas as coisas seguras, a mais segura é a dúvida.”.
CONFÚCIO: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Quem de manhã
compreendeu os ensinamentos da sabedoria, à noite pode morrer contente.”.
DEFUNTO (Elucubrando...): E que será de Isadora frente a frente com os
meus filhos de tantos casamentos na hora do enterro? Será que algumas das
minhas “ex-mulheres” também virão ao meu sepultamento? Deixei por escrito
que não quero ser cremado, detesto até mesmo fogos de artifício no palco!
Além do mais, encontros de ex-mulheres no sepultamento de ex-marido não
devem ser indiferentes...
BERTHOLD BRECHT (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): “ Um homem tem sempre medo de uma mulher que o ame
muito.”.
MOZART (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Para fazer uma
obra de arte não basta ter talento, não basta ter força, é preciso também
viver um grande amor.”.
DEFUNTO (Elucubrando...): Pensando bem,
Isadora é muito jovem ainda, vinte e oito anos e meio, poderá reconstruir
a vida com um novo companheiro e, claro, com o que deixei em termos de
peças teatrais inéditas a ela dedicadas, e que poderão ser montadas com a
ajuda de amigos e atores aparentemente fiéis ao meu teatro. Difícil é
saber quem é sincero e honesto. Prestarei atenção aos dizeres dos grandes
vultos que perpassam minha sombra meio cá meio lá... É difícil
interpretá-los, pois são sábios demais!
LOPE DE VEGA (Vulto
falando, ou sabe-se lá...): “Deus nos livre de inimizades de amigos!”.
KATHERINE MANSFIELD (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Eu quero ser
tudo que sou capaz de me tornar.”.
OVÍDIO (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): “Simula ser aquilo que não é.”.
SALOMÃO (Vulto
falando, ou sabe-se lá...): “Assim que comerão do fruto do seu caminho, e
fartar-se-ão dos seus próprios conselhos”.
DEMÓSTENES (Vulto
falando, ou sabe-se lá...): “O próximo dia ensina ao dia que passou.”.
JUAN CARLOS ONETTI: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Sempre digo
que as críticas são como a morte, às vezes demoram, mas chegam sempre.”.
MÁRIO DE ANDRADE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Não devemos
servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.”.
MACHADO
DE ASSIS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “A moral é uma, os pecados são
diferentes.”.
SARTRE: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Não há
necessidade de grelhas, o inferno são os outros.”.
ROUSSEAU (Vulto
falando, ou sabe-se lá...): “A paciência é amarga, mas o seu fruto é
doce.”.
LA FONTAINE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “O símbolo
dos ingratos não é a Serpente. É o Homem.”.
GUIMARÃES ROSA (Vulto
falando, ou sabe-se lá...): “Felicidade se acha em horinhas de descuido.”.
MACHADO DE ASSIS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Está morto,
podemos elogiá-lo à vontade.”.
Extraído do livro "HISTÓRIAS TIPO ASSIM: WHATS-au-au-APP",
selo IMPRIMATUR, Ed. 7Letras.