(3ª Dimensão)
DEFUNTO (Elucubrando...): Não, ao menos desta vez não fui roubado nem
furtado. Estou mortinho da silva. Tomara que Isadora me cerre logo as
pálpebras, pois olhos esbugalhados tem aspecto horrível. Podem até
assustar o nosso cachorrinho, o obediente Pimpolho. Por outro lado, minha
asma, amante fidelíssima, companheira e algoz que me sugava o ar e chiava
querendo mais, parece que desapareceu! Atrás de emprego é que não foi. A
vida no Brasil está difícil e tende a piorar! Ainda mais com esses
governantes de direta, de esquerda, de centro, mas que só administram bem
as suas próprias contas bancárias no Exterior... Sem falar nos
presentinhos milionários dos empreiteiros e banqueiros... Bem, e sem falar
no absurdo de dezenas de partidos políticos em troca-troca de favores! Mas
o país é um penico continental e nele cabe tudo quanto é tipo de merda
mesmo... Porra! Lá estou eu falando como se estivesse em cena...
Estranho, muito estranho, de repente enxergo melhor! E sem óculos e olhos,
pois estes últimos morreram comigo. No entanto, minha visão está
amplificada. Os morros do Corcovado e do Pão de Açúcar cabem no mesmo
plano, ainda bem que ainda estão lá, quero dizer, não foram roubados e
levados para outras bandas por nossos políticos... Nunca reparei nisso
quando era vivo. A propósito, o mundo, no início do Século XXI, ficou
essencialmente fragmentado, mas, de fato, todos os viventes são induzidos
e seduzidos pelas tecnologias digitais: acham que o mundo é globalizado,
e, ao mesmo tempo, descobriram que ele cabe nas mãos!
MARCEL
PROUST (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “A viagem da descoberta consiste
em não achar novas paisagens, mas ver como novos olhos.”.
DEFUNTO
(Elucubrando...): Curioso é que eu me lembro com facilidade dos nomes
próprios daqueles que também já transitaram. Será que espaço, tempo e
outras dimensões se decompuseram numa razão imponderável para
recém-finado? Quem saberá?
JOSÉ SARAMAGO (Vulto falando, ou sabe-se
lá...): Na condição de dramaturgo recém-finado, deverias confirmar que
repeti à exaustão nas minhas obras: “Deus saberá!”.
DEFUNTO
(Elucubrando...): Agora, percebo tudo, como se emerso de sono profundo e
restaurador, e há enorme claridade por toda parte. Dou-me conta de poder
enxergar através dos sólidos. Talvez possa entrar também no pensamento das
pessoas, por causa da onisciência dos defuntos, libertos de veleidades e
interesses do mundo terreno. Tomara não cruze com vultos de parlamentares
do Planalto, aliás, de Brasília, porque defuntos não tem papas na língua!
Porém, apesar de morto, estou confuso, porque ainda consigo, acho, talvez,
pensar, elucubrar, sei lá... Mas já não respiro nem meu coração palpita.
Sístole e diástole frearam enquanto dormência glacial se alastrou pelo
corpo. As vísceras operárias cruzaram os braços durante a produção de
excrementos. Merda! Estou, de novo, usando jargão teatral... Mas Brasília
não é um teatro de corruptos?
CLARICE LISPECTOR: (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): “Brasília. Uma prisão ao ar livre.”.
MACHADO DE
ASSIS: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Há coisas que melhor se dizem
calando.”.
DEFUNTO (Elucubrando): Enfim, sinto meu cadáver
esverdeando, amarelando, azulando e branqueando. Enrijeço dignamente
porque liderei artistas engajados na ordem e progresso do país, tal como
no pavilhão nacional.
BEAUDELAIRE (Vulto falando, ou sabe-se
lá...): “A imaginação é positivamente aparentada com o infinito.”.
DEFUNTO (Elucubrando...): Constato que a morte tem variados atributos: não
é reacionária, embora imperialista e dominadora. É sisuda, mas
contagiante. Avassala o corpo inteiro e é progressista. Será que o tal do
aparelhamento político em voga entre os vivos no Poder contagiou os
mortos? Porra, isso também já é demais! Tomara que apareça outro vulto
para me esclarecer o que acontecerá com o meu finado corpo em termos
terrenos!
MÁRIO DE ANDRADE (Vulto falando, ou sabe-se lá...):
“Quando a alma fala, já não fala nada.”.
LAWRENCE STERN (Vulto
falando, ou sabe-se lá...): “Tenho certeza de possuir uma alma, e todos os
livros com os quais os materialistas enfadaram o mundo não me convencem do
contrário.”.
SÓFOCLES (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Nós que
vivemos aqui não somos mais do que fantasmas ou ligeiras sombras.”.
RABELAIS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Vou em busca de um grande
talvez.”.
PABLO NERUDA (VULTO FALANDO, OU SABE-SE LÁ...): … tua
matéria corporal permanecerá aí mesmo, nesse país de mierda, onde crime e
autoridade se cortejam, e atrás de cortinas emporcalhadas se seduzem, ou
se estupram entre coxias por privilégio em licitações públicas, ou por
dinheiro vivo em mala, maleta, cueca ou depósito em conta de banco na
Suíça, nas Bahamas e alhures.
PADRE ANTÔNIO VIEIRA: (VULTO FALANDO
OU SABE-SE LÁ...) “… Onde o verbo roubar se conjuga em todos os modos!”.
ANÔNIMO (Vulto falando ou sabe-se lá...): “... onde o provisório
dita e o transitório fica”.
CHARLES DE GAULLE (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): “O Brasil não é um país sério.”.
MILLÔR FERNANDES
(VULTO FALANDO, OU SABE-SE LÁ...): “VIVA O BRASIL, ONDE TODO DIA É 1º DE
ABRIL”..
Extraído do livro "HISTÓRIAS TIPO ASSIM: WHATS-au-au-APP",
selo IMPRIMATUR, Ed. 7Letras.