(2ª Dimensão)
DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Se arredares a tua bunda de
cima das minhas botas e esperares que eu termine o meu
aggiornamento,
digo, atualização, sobre a tua época, iluminarei o entorno para que possas
enxergar além da tua imaginação de dramaturgo da periferia, e te mostrarei
onde estás e, possivelmente, indicarei o teu caminho de expiação.
DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Quem és tu? Com essa fala recheada de
promessas deves ser algum Senador reeleito pela terceira vez e líder de
bancada no Planalto...
DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...):
Sou Dante, ou melhor, eu era, ou eu fui... Dante Alighieri, como queiras.
DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Incrível! Logo na minha
primeira conversa depois de morto dou de cara com um sujeito que morreu há
séculos, mas se tornou imortal pela obra que fez! Aliás, imortal de
verdade, sem disputa, propaganda, eleição, diploma, fardão, currículo e
medalheiro, ou seria medalhário? Aqui não tenho dicionário nem internet
para acessar o Google! Mas, Dante, meu caro, onde é que eu estou? Aliás,
onde é que nós estamos?
DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...):
NÓS? Em verdade, tu estás na merda de sempre, aliás, no teu país de merda!
Sou Dante Alighieri, estou numa dimensão superior faz séculos! Desci até
aqui a pedido de uma anja gostosa...
DEFUNTO (Falando, ou sabe-se
lá...): Então ainda estou no Brasil? Aliás, na tua época acho que o meu
país nem existia, ou, talvez, acho que foi isso, pouco depois da tua morte
ficou conhecido como a terra do pau-brasil...
DANTE (Vulto falando,
ou sabe-se lá...): Nem pensar! Estás na merda mesmo, ou seja: terás o
corpo enterrado no teu país e..., bem, a tua alma vai para o Purgatório
dessas bandas aí mesmo, terrenas! Aliás, o Purgatório agora é todo feito
de plástico – paredes, tetos, assoalhos, instrumentos – tudo agora é
importado da China! Soube que até o Inferno está importando fogos de
artifício utilizados nas comemorações do Ano Novo Chinês!
DEFUNTO
(Falando, ou sabe-se lá...): Que naturalidade, fala comigo sem inflar o
peito nem insinuar medalhário! Então, depois que enterrarem meu corpo no
Brasil a minha alma vai pro Purgatório de merda, digo, Purgatório de
plástico
made in China?
DANTE (Vulto falando, ou sabe-se
lá...): Procura ser mais polido!
Cazzo! Todo morto é igual aos
bilhões de mortos que nos precederam, ou seja, não valemos nada mais do
que as despesas com o próprio funeral.
DEFUNTO (Falando, ou sabe-se
lá...): Me desculpa, eu era dramaturgo profissional, e reações do pessoal
de teatro são tão espontâneas quanto corrupção em licitações públicas no
Brasil. Sei que em vida cometi todo tipo de pecado: pecado original,
venial, mortal, nefando, político, pecado capital... Mas ir parar num
Purgatório aqui mesmo, com certeza repleto de propinas oferecidas por
elementos representativos dos poderes dominantes no Brasil, e cá pra nós,
todo de plástico
made in China, é desaforo dos comandos celestiais!
DANTE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Presta bem atenção! O
Purgatório é expiação reservada aos que cometeram pecados com alguma
chance de remissão. Do jeito que o mundo terreno ficou, com terrorismo
praticado por fanáticos suicidas – e até por crianças e mulheres aliciadas
– ou financiado por banqueiros e líderes barbudos, com guerrilhas entre
famílias e etnias por causa de territórios que se comparados ao Universo
não passam de pau de galinheiro em fundos de quintal... Vocês estão
ressuscitando as briguinhas dos tempos bíblicos, enquanto milhões morrem
de fome, de doenças evitáveis ou por falta de hospitais. Mas se fizeres
por merecer, daqui pra frente, ainda poderás ser perdoado pelo Criador de
todas as coisas e subires para outros planos e dimensões. Em verdade, por
experiência própria, acho que o pior pecado dos dramaturgos é tentar
imitar os poderes divinos!
DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...):
Imitar os poderes divinos? Nunca pensei nisso!
DANTE (Vulto falando
ou...): Bem, eu escrevi um longo poema épico e teológico, talvez o maior
já escrito por essas bandas terrenas ocidentais e que tu conhecerás pelo
título de “Divina Comédia”. Eu já paguei meus pecados por isso, por ter
tentado antecipar o que se passa no Inferno, no Céu, no Purgatório... E tu
não fizeste algo parecido – claro que não em qualidade... porque és
medíocre – quero dizer em termos de criatividade? Aliás, constatei que foi
o que fizeste na vida além de casar absurdamente oito vezes: criar
personagens, manipulá-los e direcionar os seus destinos, como se fosses
Deus!
DEFUNTO (Falando, ou sabe-se lá...): Eu fiz teatro por amor
à arte! Criei personagens por amor à arte! Casei oito vezes por amor ao
amor... A partir dos vinte e dois anos de idade, troquei de mulher a cada
cinco anos... Mas, claro, tudo por força do Amor... Eu e as oito mulheres
com as quais casei sempre falamos a verdade entre nós... Amantes honestos
não mentem nem por necessidade...
MARCEL PROUST (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): Só se ama o que não se possui completamente.
CAMÕES
(Vulto falando, ou sabe-se lá...): Amar é um cuidar que se ganha em se
perder.
MACHADO DE ASSIS (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Não se
ama duas vezes a mesma mulher.
TCHEKHOV (Vulto falando, ou sabe-se
lá...): Eles são honestos: não mentem sem necessidade.
DEFUNTO
(Falando, ou sabe-se lá...): Dante? Estás aí? Por que as almas do Proust,
Machado, Tchekhov e do Camões apareceram aí de repente na nossa conversa?
DANTE (Vulto falando ou...):
Cazzo! Escuta só, artista da
periferia! Ainda estou aqui, mas logo voltarei às elevadas dimensões.
Porém, antes de ir-me, e porque tenho apreço ao que chamas de teatro,
alerto com veemência que todo defunto noviço terá a alma penada e ouvirá,
aleatoriamente, como ouviste de Tchekhov, Machado, Camões e Proust, outras
opiniões de grandes vultos. Pondera-as bem, sem contestar o mínimo que
seja, pois tua experiência terrena é irrisória!
DEFUNTO (Falando,
ou sabe-se lá...): Valeu! De fato, não fui dramaturgo brilhante, midiático
e virtual! Mas lutei na vida! Eu era engajado contra disparidades sociais,
econômicas, sexuais, e imorais dos meus conterrâneos e contemporâneos!
OSWALD DE ANDRADE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): A vida é uma
calamidade a prestações.
DANTE (Falando, ou sabe-se lá...): Convém
saberes que a presunção dos dramaturgos perturba a Suprema Onisciência, e
os Conselheiros Celestes perdem a paciência com iniciações de almas
presunçosas. Lembra-te disso! Mas se agires sempre humildemente,
confessando teus pecados de todo tipo e minimizando a tua pretensiosa
arte, conseguirás reciclar teus pecados! Vai-te! A tua expiação pode
demorar séculos e seres reencarnado em outros personagens, ou até em
dramaturgos melhores, embora essa aparente morte súbita que sofreste tenha
apagado a tua noção do Tempo! Arrivederci!
DEFUNTO (Falando, ou
sabe-se lá...): Por falar em Tempo, que hora é essa?
SHAKESPEARE
(Vulto falando, ou sabe-se lá...): ... hora de ser honesto.
FERNANDO PESSOA (Vulto recitando, ou sabe-se lá...): As horas pela alameda
vestes de seda arrastam.
DEFUNTO (Elucubrando...): Ufa! Ainda estou
me recuperando do encontro com Dante e já estão aparecendo outros vultos
notáveis! Terá sido um sonho, ou estarei sonhando ainda? Não, acho que
não. Inexiste ambiência onírica – aqueles véus de bruma se infiltrando no
sono pelas frestas das pestanas e serpenteando entre personagens quase
reais.
ERICH FROMM (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Quando
dormindo, não estamos preocupados em subjugar o mundo exterior a nossos
propósitos. Ficamos inermes e, por isso, o sono foi apropriadamente
denominado ‘o irmão da morte’.
DEFUNTO (Elucubrando...): Bem,
primeiro vou tratar do mais penoso, ou seja, constatar minha própria
morte! Depois tratarei da expiação. Deve ser fácil relembrar meus pecados
de diversas categorias, pois quase todo mundo peca “por pensamentos,
palavras e obras!”. E se, no Brasil, já foi instituída a tal da “‘delação
premiada” para políticos e seus sócios corruptos pecadores, quem sabe no
Purgatório funcionará algum tipo de premiação semelhante? Então, nesses
primeiros momentos pós-morte acho que isso é o mais importante... Depois,
pensarei no que Dante disse sobre a minha presunçosa imitação de Deus! E
sobre os meus oito casamentos... Aliás, todos só com mulheres... Disso me
orgulhei sempre: sou conservador, macho caçador de fêmea, como nos tempos
pré-históricos...
SALOMÃO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Sou
Salomão, personagem bíblico, e te recito o Evangelho: ”Filho meu, se os
pecadores te atraírem com afagos, não consintas”.
VIRGINIA WOOLF
(Vulto falando, ou sabe-se lá...): Tanto faz morrer no sofá da sala ou se
atirar em um rio como fiz em Londres... Pureza e venalidade, corrupção e
decência, vida e morte: os extremos se afagam o tempo todo...
SANTO
TOMÁS DE AQUINO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Há poucos escolhidos
que serão salvos.
DEFUNTO (Elucubrando...): É incrível poder ouvir
esses grandes vultos! Dante me aconselhou a não rebater seus argumentos.
Vou ficar girando em torno do que fui, achando isso, pensando aquilo, se
pensar for termo propício. Certo é que tombado estou, inerte, verbo
lacrado, cores defuntas, expressões finadas. Meus óculos, astigmatismo e
miopia desapareceram. Será que fui vítima de um dos milhares de bandidos
menores de idade em inúteis processos de ressocialização no Brasil? Será
que os legisladores brasileiros pensam que o nosso menor de idade tem a
essência ética, cultural e educacional do jovem nascido em países como a
Dinamarca, Suécia, Noruega, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Suíça, Japão,
Nova Zelândia e em outros lugares desenvolvidos que investiram pesado em
educação e infraestrutura geral para se viver dignamente?
FEDRO
(Vulto falando, ou sabe-se lá...): Entre diversos males, escolhe o menor.
MENOR BANDIDO (Vulto falando, ou sabe-se lá...): Matei meus pais,
avós, irmãos, primos e tios pra acelerar o processo da herança a que faria
jus um dia, porque ficar esperando processo tipo inventário na Justiça no
Brasil, ou qualquer processo judicial, leva uma eternidade! Dei azar
porque outro menor, mais bandido do que eu, não gostou da minha história e
perfurou o meu coração com uma chave tipo de fenda durante aula de
convivência social no centro de ressocialização de menores. Eu agora estou
aqui, mas ele ainda está se ressocializando, matando, estuprando e
assaltando sob a cobertura das leis brasileiras!
RUY BARBOSA (Vulto
falando, ou sabe-se lá...): A Justiça atrasada não é justiça, senão
injustiça qualificada e manifesta.
HERMAN HESSE (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): Não existe nada tão mau, selvagem e cruel, na natureza,
quanto os homens normais.
Extraído do livro "HISTÓRIAS TIPO ASSIM: WHATS-au-au-APP",
selo IMPRIMATUR, Ed. 7Letras.