(1ª Dimensão)
VIZINHO (Digitando o celular face a face com
a interlocutora): Lamento minha senhora..., é triste, mas tenho de ser
desagradável… Acho que o Celso Rodrigo, seu marido, aliás, único
dramaturgo que conheci pessoalmente, sofreu um derrame e, depois, uma
parada cardíaca... Ainda tentei forte massagem no seu tórax, mas…
Infelizmente...
DEFUNTO (Pensando, ou sabe-se lá...): Ouvi exatamente
isso da boca do novo vizinho. Sei que ele é paramédico. Mas, se eu já
morri, é absurdo continuar ouvindo os vivos porque defuntos, até mesmo os
políticos de Brasília, que em vida podem tudo, não conseguem ter os
sentidos funcionando depois da morte. E também vejo tudo, tudinho, mas não
com os olhos, talvez eu esteja numa última fase de sobrevida, ou
enxergando a vida do lado de lá e de cá, não sei explicar. Isadora, minha
oitava mulher, parece atônita...
FERNANDO PESSOA (Vulto falando, ou
sabe-se lá...): “Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida
contém. Os outros sentidos são plebeus e carnais...”.
ISADORA
(Digitando o celular frente a frente com o vizinho): Ai, ai, meu vizinho!
Não! Não posso acreditar que o meu querido Celso Rodrigo, tão novo,
sessenta e dois anos, esteja morto! Tínhamos tantos planos! Meu Deus! Não
sei nem por onde começar... Nunca pensei nisso... Nunca supus uma tragédia
tipo assim... E fui atriz de teatro desde menina... Nós nos apaixonamos na
última turnê, foi um amor fulminante, apesar de ser o oitavo casamento
dele!
FREUD (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Como fica forte uma
pessoa quando está segura de ser amada.”.
JORGE LUIS BORGES (Vulto
falando, ou sabe-se lá...):”O casamento é um destino pobre para uma
mulher.”.
TCHEKHOV (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Um casamento
feliz pode existir apenas entre um marido surdo e uma mulher cega.”.
LOPE DE VEGA (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “O apaixonado nunca é
feliz, a felicidade é o preço da audácia.”.
VIZINHO (Digitando o
celular frente a frente com Isadora...): Minha senhora... Acho melhor
chamar o médico da família e alguns parentes também... A senhora vai
precisar de atestado de óbito, testemunhas para documentos e de ajuda para
o enterro... Se o seu marido tinha um bom Plano de Saúde tudo será mais
fácil. Tem Plano de Saúde com direito a helicóptero que já carrega o
médico legista para atestar o óbito, os representantes do serviço
funerário e do cartório móvel onde será registrado o falecimento... Alguns
trazem ainda músicos caso o cliente patrocinador do enterro queira
amenizar a tristeza do ambiente... Claro que planos dessa categoria também
já trazem representantes de lojas de flores para as coroas de praxe... Nos
Estados Unidos fazem até serviço de coquetel durante o velório... Desculpe
falar assim numa hora dessas! Mas é a realidade da vida no encontro com a
morte!
NIETZSCHE: (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Sem a música, a
vida seria um erro.”.
ISADORA (Ainda digitando frente a frente com o
vizinho): Meu Deus! Não posso acreditar! Celso Rodrigo estava tão calmo
lendo o jornal, no sofá em frente à televisão, com o celular na mão e ao
lado do Pimpolho, o nosso cachorrinho… Será que teve um mal súbito ao ler
alguma mensagem assustadora sobre a nova peça que estava montando? Ainda
não acredito que Rodrigo esteja morto!
VIZINHO (Digitando ainda frente
a frente com Isadora...): Sinto muito senhora, não quero me intrometer,
mas jornal hoje em dia é quase inofensivo. E, bem, televisão é um tipo de
droga lenta. Agora, celulares tem efeito instantâneo: tipo droga na veia!
Desculpe, tenho de ir embora... Preciso atender ao chamado de um dos meus
envenenados, digo, de um dos meus seguidores!
ISADORA (Digitando ainda
frente a frente com o vizinho...): Obrigada, vizinho! Muito obrigada pelo
socorro... Num momento desesperador como este, ainda bem que o senhor
ouviu os meus gritos no módulo viva-voz do seu celular e atendeu
imediatamente...
VIZINHO (Digitando suas despedidas frente a frente
com Isadora...): Bem, eu estava chegando da rua, aliás, ainda estava
abrindo a porta... Se precisar – eu sou Salvador de Areal e Barros –
tome aqui o meu cartão profissional, tem também outros dados eletrônicos e
virtuais. Foi uma boa ideia do Síndico que os condôminos tenham os números
dos celulares dos vizinhos mais próximos... Parece que ele estava
adivinhando... Desculpe, vou atender a um cliente que me chama no meu
segundo celular... Boa noite! Me avise por favor sobre o enterro!
ALBERT EINSTEIN (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Tornou-se
chocantemente óbvio que a nossa tecnologia excede a nossa humanidade.”.
DEFUNTO (Elucubrando, ou sabe-se lá...): Tive a impressão de que
também ouvi outras vozes... Mas, agora, parece que estranha sensação me
invade. Sinto como se caísse ou viajasse velozmente, o entorno girando sem
parar, e eu rodando no sentido inverso, sempre sem parar, sempre…, agora
sim, meio errante e destrambelhado, acho que estou parando, parando. Sim,
aos poucos, tudo vai se aquietando. Se a sensação estranha era dupla
vertigem, acabou-se. Paira em torno inexplicável escuridão, porém são
matizes escuros que nunca vi! Transpus o túnel do Além? Cheguei à morada
dos mortos? E as vozes estranhas que ouvi? Pareciam vozes do Além, de
imortais... Quem saberá?
EDGAR ALLAN POE: (Vulto declamando versos, ou
sabe-se lá...):
“A sondar a escuridão, lá fiquei, meditando em vão
Sonhando sonhos que nunca ser algum sonhou jamais.”
DEFUNTO
(Elucubrando, ou sabe-se lá): Agora percebi. Esses versos são do Poe e
eles estão no fenomenal poema “O Corvo”. Deve ser outra voz de imortal que
passa por aqui nessa escuridão! Acho que vou tentar de algum modo também
me estabelecer no meio dessas trevas... Tateio alguma coisa aqui embaixo,
acho que é uma saliência de pelica ou de couro, vou tratar de me acomodar
nela. Porém, se estou morto e rumo à eternidade, onde está a multidão de
mortos que me precedeu? Onde se esconde a humanidade inteira que já
transitou? Só percebi até agora as vozes desses vultos solitários, meio
perdidos, embora reconhecidos como imortais pelo que deixaram na arte...
DAVID BOWIE (Vulto cantando, ou sabe-se lá...): “Eu estou no vento”.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (VULTO FALANDO OU SABE-SE LÁ...): “O pássaro é
livre na prisão do ar. O espírito é livre na prisão do corpo.”.
DEFUNTO
(Elucubrando, ou sabe-se lá...): Irado! Estão aparecendo mais e mais
vultos extraordinários. Se Deus é tão perfeito quanto pregam, deveria isso
sim, haver um guia, anjo, ou espírito iluminado esperando por mim no
portal entre a vida e a morte... No mínimo aparecer alguém credenciado
para me explicar o que tenho de fazer nesse vácuo, vento ou... Talvez
tomar um banho com ervas... Ou acender incenso, ou meia dúzia de velas...
Talvez trocar de roupa, botar gravata, paletó! Alguém que me mostrasse o
caminho a seguir nessa escuridão. Numa hora dessas é que se vê o valor de
um motorista tipo Uber com GPS e aplicativos virtuais no painel do carro!
GOETHE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Mais luz!”.
MANOEL DE BARROS
(Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Só o obscuro nos cintila.”.
DEFUNTO
(Elucubrando, ou sabe-se lá...): Sim, mais luz é fundamental. Pior é que
fiquei sem o celular... Meu aparelho tinha lanterna... Mas como não há
morcegos, víboras e lagartos por perto, e nem sombra de Mefistófeles, ao
menos acho que isto aqui não é o Inferno! Ou será que é? Afinal, onde é
que eu estou?
NELSON RODRIGUES (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “Só
os profetas enxergam o óbvio.”.
DEFUNTO (Pensando, ou sabe-se lá...):
Nossa! Quantos imortais de grande estatura! Em vida, ouvi muita gente
dizer que o Inferno é aqui mesmo na terra... Vai ver então que é... Nosso
cachorrinho de estimação e de toda confiança, o Pimpolho, parece querer
lamber a minha mão. Será que ele está querendo me avisar sobre alguma
coisa prestes a acontecer e que só animais tipo assim enxergam, sentem ou
até preveem? Mas avisar-me em silêncio, sem nenhuma espécie de latido?
Dizem que certos animais possuem sentidos que nós, humanos, ainda não
temos... Mas é difícil confiar nessas coisas meio esotéricas...
SHAKESPEARE (Vulto falando, ou sabe-se lá...): “O silêncio é o mais
perfeito arauto da felicidade!”. .
BRAHMS (Vulto falando, ou sabe-se
lá...): “A confiança perdida é difícil de recuperar. Ela não cresce como
as unhas.”.
Extraído do livro: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”