Carlos Trigueiro
VERMES PÓS-MODERNOS ou TIPO ASSIM ADVERTÊNCIA: Texto forte! Leitores
impressionáveis devem saltá-lo.
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Primeiro de tudo: asseverar que este texto não é ficcional, somente
recorrendo à sábia prudência..., tipo José Saramago - “Deus saberá”.
Num cemitério de Brasília, ocorreu o seguinte falatório entre vermes
antes e depois do sepultamento de um corpo. A fim de que o desprendido
leitor não conteste o inusitado, será imprescindível ler com atenção e sem
preconceitos religiosos, políticos, étnicos, ou de outra índole, o que
segue abaixo.
Em verdade, sucedeu que um senhor de classe social
elevada deixou em seu testamento - lavrado em Cartório oficial - instrução
aos respectivos familiares e herdeiros para que o seu corpo não fosse
cremado, mas enterrado e vestido com terno de grife, cabendo no bolso
interno do paletó, do lado do coração, o seu i-phone com chip e baterias
em perfeito estado, bem como todos os aplicativos e agenda de contatos que
costumava utilizar em vida.
Curiosamente - se é que nestes tempos
pós-modernos existe ainda alguma coisa que desperte curiosidade - no mesmo
documento, registrou que os familiares deveriam entregar o seu corpo
falecido já totalmente vestido à funerária encarregada do sepultamento, e
que, obrigatoriamente, suas últimas cuecas e camisa social a serem usadas
fossem de puro algodão, ou seja, nada de fibras sintéticas.
Também
instruiu, por escrito, que colocassem nos bolsos de suas calças rumo à
sepultura cinco listas lacradas, em antigo papel almaço, contendo nomes de
parceiros em negócios. Tais listas estariam guardadas no cofre de seu
escritório doméstico, na Asa Sul da capital brasileira.
Particularmente, fora do Cartório, segredou aos familiares que a
combinação e chave para abertura do cofre estariam guardadas com a sua
cozinheira, Priscila, de total confiança e que lhe fazia vontades de
qualquer ordem havia anos, desde que enviuvara pela segunda vez.
Para configurar o tempo em que ocorreu o episódio vindouro, convém
registrar que o influente senhor faleceu trasanteontem - como diria Arthur
Azevedo se ainda continuasse andanças por estas paragens.
Embora
sem a convicção que era de se esperar de lutuosos, e, por isso, meio
aturdidos, os familiares cumpriram o desejo do figurão que, além de
bilionário e ligado à cúpula dos partidos políticos e aparelhos sindicais
dominantes, tinha manias pra lá de extravagantes.
A mais
provocadora de suas manias, digamos, era a paixão por cibernética,
telemática e memética, sentimento esse que o levou a investir pesado em
empresas nacionais e estrangeiras especializadas em criptografia
eletrônica, decifração de bits, algoritmos, ruídos estelares do Universo -
de que já falava Einstein - e assemelhados. Três horas após a cerimônia
fúnebre ocorreu, no interior do túmulo, o falatório discriminado nos
parágrafos seguintes à linha pontilhada.
Assim, todo o teor
descriptografado (“decifrado” foi a terminologia usada por especialistas
contratados pela família) da simbologia dos vermes necrófagos, por
aplicativo baixado no i-phone, foi traduzido e retransmitido palavra por
palavra num sistema de viva voz (também decodificado) para amigos do
falecido constantes da agenda arquivada no citado aparelho e, em suma,
aficionados do enigmático assunto.
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“Oba! Faz tempo não temos carne nova nesta porcaria de tumba. Tomara
seja cadáver sem essas doenças da moda, porque no túmulo aí ao lado, os
vermes e bactérias nossos aparentados reclamaram que o defunto sepultado
anteontem tivera zika, dengue e chicungunya, tudo junto e misturado e, por
isso, o gosto das carnes era horrível! Mal deu para fazerem o trabalho de
decomposição inicial que a Mãe-Natureza lhes encarregou desde o início dos
tempos.”.
“Vai ver que não era o gosto autêntico da carne que
sofrera ataques de zika, dengue e chicungunya, mano... Talvez fossem
rescaldos do paladar forte de antibióticos que os médicos aplicaram no
doente tentando salvá-lo para retardar a nossa incompreendida missão
saprófaga que recicla a cadeia alimentar deste mundo!”
“Mano, não é
nada disso! O cadáver do cara enterrado aí ao lado era de um
ajudante-de-pedreiro, e nos hospitais públicos do Brasil não há nem sombra
de remédio pra essa turma aí da classe baixa...”.
”Bem, mano, eu
não sei ao certo, porque me dedico mesmo ao árduo trabalho de decompor
imediatamente os cadáveres que enterram aqui. Eu e minha turma enfileirada
começamos pelos órgãos que se liquefazem mais rápido, tipo assim: olhos,
cérebro, pulmões, pâncreas, intestinos, etc. Aliás, já vamos começar a
deglutir o figurão que baixaram faz pouco. Só pelas roupas e corpanzil a
gente vê logo que era gente abastada, provavelmente um político,
empreiteiro, lobista. doleiro ou gente ligada aos partidos da situação.”.
“Maneiro! Esse manjar que baixaram hoje é de cardápio premiado! O
corpo veste até roupas íntimas de algodão, e que são ótimas para
degustarmos junto com os molhos naturais das vísceras maiores, tipo
fígado.”.
“Mano! Reparou que o cara tem no bolso do paletó aquele
aparelho que transformou a vida dos bobalhões humanos?”.
“Vi sim,
esse material não dá pra degustarmos logo. Sua decomposição levará
centenas de anos.”.
“De que é feito essa porcaria, mano?”
“É
feito de material duro e resistente aos nossos esforços sugadores, e tem
ainda fiação metalizada, produtos químicos e os tais algoritmos
memorizados. Além do mais, transmitem virtualmente para aparelhos
similares lá de cima tudo o que se passa aqui embaixo. Enfim, esse
aparelhinho aparentemente inofensivo maltrata nosso apetite invulgar,
nosso paladar refinado e nosso metabolismo elaborado há milhões de anos
pela Mãe-Natureza!”.
“Você não vai acreditar! Olha só o que os
nossos primos mais famintos já encontraram nos bolsos da calça dele:
listas lacradas com nomes de pessoas, datas e cifrões ao lado - tudo
anotado em papel almaço, essa versão moderna do papiro egípcio e que os
nossos ancestrais comiam quando acabavam os manjares dos órgãos
decompostos de nobres e parentes dos faraós!”
“Irado! Demais! Essas
listas registram as propinas que o figurão utilizava com políticos,
empreiteiros, governantes, banqueiros, lobistas, enfim, homens de
negócios, porque pra nós, saprófagos, aqui embaixo todos os corpos
humanos, salvo os drogados e aqueles muito medicados, são todos iguais,
depois da milionésima oitava mordida.”.
“Tudo bem! Mas ainda não
entendi como um figurão desses que deve ter tido, em vida, helicópteros,
escritórios, secretárias, amantes, computadores de última geração etc.,
anotou esses dados das propinas - quem, quanto, quando e pra quê - em
folhas de papel almaço...”.
“Você é um verme ainda jovem e ainda
não tem a malícia multimilenária dos detritívoros como eu e que foi
transferida de geração em geração. Explico: se o figurão registrasse em
computadores e assemelhados suas propinas ganhas ou distribuídas, ele
ficaria vulnerável às investigações das autoridades, à fiscalização
tributária, aos saques eletrônicos de hackers e afins. Por isso, ele
registrou suas propinas ativas e passivas em papel almaço!”.
“Gênio
da saprofagia! Se o papel almaço é feito de matéria orgânica tipo
celulose, o figurão sabia que, terminado o pasto principal que logo se
liquefaz do cadáver, comeríamos o papel com os registros das propinas e
assim as provas desapareceriam, virariam o que eles lá em cima chamam de
merda.”
“Termina o raciocínio, mano!”
“Foi por isso que ele
optou por não ser cremado! E deve ter deixado isso por escrito em
testamento em tipo assim... Cartório. E pra finalizar - que já estou
sentindo o forte cheiro dos manjares líquidos que escorrem do cérebro dele
pelo nariz... O figurão se preveniu, pois, com certeza, a empresa
funerária contratada para a cerimônia crematória revisaria todos os bolsos
dele antes de ligar o forno e, lógico, acharia as listas das propinas.
Então, de imediato, também cobraria propina da família, não é mesmo? Por
isso aprendemos desde sempre que a humanidade só é boa mesmo no túmulo,
quando suas carnes saciam nosso apetite saprófago e nós, com toda
paciência e humildade, reciclamos a cadeia alimentar deste porco imundo,
digo, porco mundo”.
Extraído do livro: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”
(15 de agosto/2016)
CooJornal nº 996
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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