Numa cidadezinha longínqua, quase imaginária, mas absolutamente real e
experimental, segundo o partido político socializante ganhador das últimas
eleições em país não muito longe daqui, o sistema de vida das pessoas
passou a funcionar sob os parâmetros obrigatórios dos chamados cinco
oitavos. O lugar se chamava “Oitavolândia”.
Na alimentação, em
termos gerais, os pratos destinados às refeições das pessoas eram cortados
milimetricamente com menos 3/8 da circunferência dos pratos normais. Além
disso, os copos, as garrafas, os garfos, as colheres, as facas, tudo tinha
menos 3/8 de comprimento, largura, circunferência, espessura, peso,
embocadura.
No vestuário, as roupas, os ternos, as gravatas, os
vestidos, as golas, os cintos, as camisas, as calças, as bermudas, as
calcinhas, os sutiãs, as meias, os chapéus, os bonés, os calções, os
biquínis, os maiôs, sapatos, sandálias, tamancos, tudo media ou pesava
exatamente menos 3/8 do que seria o normal. Claro que havia desconforto em
muitos casos, mas sendo a lei válida para todos, no fim das contas o
conjunto da comunidade assim socializada saía ganhando com a perda
padronizada de menos 3/8 para tudo.
No setor habitacional, as
casas, os telhados, os quintais, os muros, as portas, os quartos, as
salas, dependências de serviço, bem como os apartamentos em edifícios
passaram a obedecer à regra dos 3/8 a menos, desde os espaços-comuns aos
condôminos, os chamados playgrounds, mas também os móveis e
aparelhos eletrodomésticos tais como geladeira, fogão, filtros, televisão,
fornos, adegas, liquidificadores, enceradeiras, aspiradores de pó, e tudo
o mais.
Na alimentação, as carnes de qualquer origem (terra, mar
ou ar) bem como os enlatados e mesmo o leite, os pães, os pacotes de
massas e biscoitos, os refrigerantes e quaisquer bebidas (alcoólicas ou
não) passaram a ser utilizados e consumidos com menos três oitavos do que
a quantidade e peso normalmente utilizados.
Na educação, tanto
escolas de primeiro e segundo grau quanto universidades –– todas de
natureza pública –– fizeram o mesmo: reduziram em três oitavos o tempo dos
respectivos cursos, mas sem perda de conteúdo para os alunos, embora os
professores de todos os níveis cedessem 3/8 dos salários que percebiam
anteriormente em prol do sistema socializante.
O sistema era
inflexível: se todas as pessoas bem sucedidas cedessem 3/8 de suas posses
para as autoridades de “Oitavolândia” redistribuir aos que não alcançavam
a fração ideal dos oitavos completos não haveria nenhuma pessoa pobre,
nenhum miserável morador de rua, nenhum indivíduo necessitado de coisa
alguma material porque já teria o seu quinhão suficiente de oitavos para
viver e que era proveniente da fabulosa divisão oitavada.
Claro que
os 3/8 valiam para toda coisa palpável. E assim Oitavolândia vinha sendo
experiência bem sucedida nos sistemas tributário, fiscal, salarial, nos
chamados entretenimentos e lazeres, bem como no programa de ensino porque
as escolas adotaram aplicar somente 5/8 das aulas programadas no passado.
Tal projeto redundava em menos carga horária para professores e alunos,
mas, igualmente, exigia menos instalações e material estudantil, de modo
que todos os habitantes em idade escolar eram contemplados.
Obviamente, os consumos de energia, água, força motriz também foram
diminuídos de 3/8 em qualquer atividade. Os ventiladores tiveram reduzido
o movimento das suas pás ou hélices, os poucos automóveis e ônibus
passaram a se movimentar com menos 3/8 da sua força locomotora original.
Consequentemente os acidentes também diminuíram em igual proporção.
Todas as moradias passaram a ter estruturas, telhados, jardins,
portas, paredes, mobílias, mesas, cadeiras, absolutamente tudo funcionando
com menos 3/8 do que as medidas originais adotadas alhures.
A
prefeitura passou a ter menos 3/8 de estrutura administrativa, de
material, de pessoal e, claro, salarial. Até a polícia passou a utilizar
menos 3/8 de munição em suas armas, porque as necessidades de atuação
também foram reduzidas na mesma proporção. Obviamente, assaltos, furtos,
roubos também diminuíram porque qualquer pessoa era imediatamente
reconhecida se demonstrasse estar fora do padrão de posse de bens
determinado pelo projeto em vigor, ou seja, de menos três oitavos para
tudo.
Na parte produtiva da sociedade, os horários das fábricas e
dos serviços foram reduzidos de oito para cinco horas. Aquilo implicou
mudança na quantidade de sono para toda a população. Ninguém dormia demais
nem de menos, porque o despertar passou a obedecer rigorosamente o esquema
oficial dos oitavos, ou seja, todo mundo dormia 5/8 das oito horas
recomendadas antigamente pela Medicina. Os 3/8 de horas restantes de cada
habitante eram dedicados à ideia de exportar o projeto para lugares
vizinhos.
Segundo pesquisadores, Oitavolândia existiria até hoje
caso tudo ali não fosse tratado exclusivamente pelo aspecto materialista
das coisas. Assim, consta que foi o coração das pessoas que dizimou o
fenomenal projeto igualitário –– e muito à frente do sonho bolchevista
extrapolado. De fato, ninguém conseguiu amar os seus entes queridos com
menos três oitavos do que sentiam, ou ter somente cinco oitavos de saudade
dos que partiam.
Oitavolândia desapareceu para sempre numa noite
de lua cheia! Mal o astro atingiu 8/8 do seu tamanho no céu, coincidiu
que, sob as nuvens e sombras do romantismo, todos os casais apaixonados se
beijaram ao mesmo tempo, porém sem regras de oitavos pra cá ou pra lá:
beijos desregrados, voluptuosos, indomáveis, no ritmo frenético dos seus
corações a palpitar.
Oito minutos depois, aconteceu algo pra lá de
extraordinário: gigantesca explosão provocada pelo amor desenfreado em
cadeia transformou Oitavolândia num meteoro em forma de coração que está a
circular, desde então, por cinco oitavos da Via Láctea.
Extraído do livro: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”
(1º de agosto/2016)
CooJornal nº 994
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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