15/07/2016
Ano 20 - Número 992

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



CONSELHOS PÓS-MODERNOS

Carlos Trigueiro - CooJornal


“... e como eu ia dizendo, a cada dia que passa tudo fica mais difícil, mais complicado, é muito vazio, e muito silêncio, não tem meio termo, e quando não tem silêncio, tem muita cobrança, muita exigência, muita incompreensão, sabe?...”.

“... e quase nenhuma entrega, aliás, acho que nenhuma entrega, falo daquela entrega mútua, claro, e que é o que conta num casamento de tanto tempo...”.

“Além disso, tem um problema ainda maior que essa falta de entrega, acho que é a questão daquelas coisas reprimidas que cada um guarda lá dentro, e fica remoendo, remoendo, remoendo..., as coisas que a pessoa queria fazer e não fez, as coisas que pensou e não fez, as coisas que sonhou e não fez, as coisas que teve vontade de dizer e não disse, as coisas que precisava dizer e também não disse, e aí então, um belo dia, sem ninguém esperar, a pessoa não aguenta mais, escancara a boca no mundo, e bota tudo pra fora, tudo mesmo: mágoa, rancor, às vezes sujeira mesmo, lama da alma, tanta coisa imprestável, e então a pessoa não vê que está sendo ferina, grosseira, rude e, sabe como é nessas horas...”.

“... Não vê que está agredindo o outro com coisas que só existem na cabeça do agressor..., é isso... De minha parte, pra dizer a verdade, eu sei que tenho meus defeitos, não sou nem nunca fui santa, ninguém é perfeito, mas acho que sempre procurei entender o lado dele... É lógico que as pessoas não permanecem as mesmas, não pensam do mesmo jeito o tempo todo, e muito menos amam do mesmo jeito a vida inteira... A mudança interior faz parte da natureza humana que é igualzinha à mudança exterior... o envelhecimento...”.

“Mas ele agora se arrepende de não ter me ouvido quando ainda éramos mais novos, e que podíamos ter educado os filhos de outro modo, pra serem mais nossos amigos, e viessem nos ver ao menos de vez em quando... Ainda mais nesse mundo violento de hoje em dia...”.

“Quantas noites de sono nós perdemos por conta dos filhos, não é mesmo? Às vezes era só uma dorzinha de barriga, ou um resfriado, mas também tinha gripe com febre alta, e ainda aquelas doenças antigas de criança, antes das vacinas de agora: cachumba, catapora..., sarampo... sarampelo..., coqueluche, e, bem ou mal, as quedas, os escorregões, o pronto-socorro, os gessos, as tipoias...”.

“... E a preocupação com os estudos deles, com a formação, com o futuro...”.

“Pois é..., aí o futuro chegou sem mais nem menos, e levou os filhos, e nós ficamos sozinhos como no começo de tudo... Bem, a gente nunca sabe por que as coisas são assim e não assado, embora todo mundo diga que ‘Deus escreve certo por linhas tortas’...”.

“Mas então foi assim, e eu fico repetindo isso pra mim mesmo, acho que é pra me consolar...”.

“E a nossa casa que era um verdadeiro ninho no início, cheia de vida, de vozerio, de planos, de risos, de sonhos, foi perdendo a graça, ano após ano, os filhos foram casando, foram embora, até ficar do jeito que ficou: uma casa vazia, oca, sem graça, ou só com o barulho do rádio fora de moda, ou com as desgraças modernas da televisão detalhando assaltos, corrupção e crimes de todo tipo e por toda parte...”.

“... Acho que até as paredes se cansaram dos mesmos quadros, das mesmas molduras, das mesmas fotografias, das velhas manchas nas aquarelas penduradas...”.

“Uma pena! Um casal que se amava tanto e lutou pra criar os filhos, acabar assim, cada um tem que sair de casa pra preencher o tempo, o seu tempo, o tempo que falta, correndo os riscos inimagináveis desse novo tempo...”.

“Chegamos ao Shopping, minha senhora, vou parar por aqui, um pouco antes da entrada principal, depois eu explico melhor. Bem, sua corrida deu trinta reais! Mas olhe só uma coisa! Veja a coincidência! Hoje de manhã peguei um passageiro bem idoso que falou igualzinho..., quero dizer..., falou quase a mesma coisa que a senhora acabou de contar...”.

“Ah, é? Com certeza era o meu marido, nosso plano de saúde aconselhou táxi-terapia três vezes por semana! Ele faz de manhã e eu prefiro fazer à tarde. Aliás, o tratamento com o táxi sai mais barato que a terapia tradicional em consultório médico, e também é mais eficiente que o tratamento em grupo nos abrigos de idosos. O senhor sabe que tem muitos menores assaltantes soltos por aí, amparados por nossas leis e penalidades frouxas..., e, claro, os pequenos bandidos preferem alvos fáceis, invadem os abrigos de idosos, assaltam, batem e até matam! Aliás, esses menores delinquentes, treinados e drogados, matam qualquer um no meio da rua mesmo... Mas esse assunto tipo assim... socioeducativo – como dizem agora – não vale a pena estragar a nossa conversa e terapia... Vou terminar...”.

“Pois bem, além do mais, para terminar a conversa e voltando ao lado bom da terapia tipo assim é que, no táxi, ainda podemos variar tanto de ambiente interno quanto da paisagem lá fora. O Rio de Janeiro é lindo! Demais! Bem, e tem mais um coisa: quando o taxista é do tempo antigo, ou mesmo aposentado de outra profissão, mas que precisa ganhar uns trocados porque a vida está muito difícil..., e fica pacientemente escutando a nossa falação..., ele acaba se envolvendo com as nossas aflições e, às vezes, ainda sugere, por experiência própria, algum exercício de meditação, ou uma receita de ervas, de chá, de infusão caseira para nos acalmar...”.

“Senhora, por favor, a receita do momento é a seguinte: fique caladinha, por favor, e abaixe-se atrás do banco do carona o máximo que puder. Fique bem quietinha porque cinco menores assaltantes, armados com pistolas, barras de ferro, facas, canivetes e estiletes, estão se aproximando do táxi e é melhor eu fingir que não vi nada. Mas não se preocupe, este táxi é blindado.”.

“Meu Deus!”.

“Fique quieta e calada, por favor. E também não se assuste com o forte barulho que vai ouvir: vou acionar daqui mesmo do painel do carro os meus fuzis metralhadoras que estão acoplados e escondidos debaixo dos faróis dianteiros.”

“Não se assuste, estou acostumado a fazer isso! De vez em quando, faço trabalhos tipo assim..., com os fuzis-metralhadoras deste meu táxi especial... Não é que eu goste disso, mas tenho de fazer esses serviços sujos de vez em quando pra sobreviver – são encomendados pelos milicianos que ditam as normas, leis, penalidades e obrigações do subúrbio onde eu moro, e “ai” de quem levantar a mão pra perguntar alguma coisa!”.



Extraído do livro: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(15 de julho/2016)
CooJornal nº 992


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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