Houve um tempo, na década de 1970, em que morei no bairro do Leme, extremo
copacabanense mais sossegado, meio bucólico se comparado ao frenesi
diuturno da borbulhante Copacabana. No bairro, moravam artistas de TV
(lembro-me de juradas e jurados que apareciam no Programa do Chacrinha),
pessoal de teatro, cantores, músicos, banqueiros, bancários, militares,
jornalistas, funcionários públicos graduados, alguns intelectuais (um
amigo editor até entrevistou a Clarice Lispector quando moradora da Rua
Gustavo Sampaio) e, claro, a galera do dia a dia.
Praticamente,
naquele minibairro dentro do cosmopolitismo de Copacabana, todo mundo se
encontrava em bancas de jornal, padaria, sapateiros, quitandas, botecos,
choperias, pizzarias, pequenos restaurantes e mercadinhos esmirrados. Os
católicos se viam nas missas ou novenas da Paróquia de Nossa Senhora do
Rosário, à rua General Ribeiro da Costa. Naquele tempo, já era pra lá de
difícil achar uma vaga para estacionar, pois as construções do bairro, em
maioria, eram bem antigas e não tinham garagem. Muitas vezes deixei o meu
Fusca nos beirais da Avenida Atlântica.
De vez em quando
encontrava, na praia, um vizinho do prédio onde eu morava – “Sinésio” de
tal, senhor de meia-idade como se dizia naquele tempo, sempre de barba
feita, cabelos agrisalhando, muito educado e de olhos azuis afiados em
tudo ao redor – era assim que eu o definia. Ele fazia questão de
cumprimentar, no mínimo com meneio de cabeça, piscar de olho, ou discreto
aceno de mão, a todos que encontrava rumo ao banho de mar.
O
pessoal frequentador da praia cochichava que ele seria informante do SNI,
e que “Sinésio” deveria ser um codinome, pois nele cabiam discretamente as
letras “S, N e I”. Eu achava aquilo mirabolante. Aliás, na época (e mais
adiante), colaborei esporadicamente com artigos chegados à sociologia e
economia política na página de Opinião do Jornal do Brasil. Mas nunca fui
importunado por agentes da ditadura. Os amigos diziam que eu assinava os
artigos protegido por meu sobrenome “Trigueiro” – pois, naquele tempo, era
ministro do Supremo Tribunal Federal, nomeado pelo Marechal Castelo
Branco, ninguém menos do que o jurista paraibano Osvaldo Trigueiro.
Às vezes, “Sinésio”, ao me ver, puxava assunto já no elevador do
prédio sobre a situação geral do Brasil, ou então, à beira-mar, sob o sol
escaldante na areia da praia. Ele sabia que eu estudara, na década de
1960, na EBAP da Fundação Getúlio Vargas, à época em convênio com o Plano
Kennedy e a ONU numa cooperação para o desenvolvimento estratégico do
Brasil com suporte de profissionais universitários focados em
Administração Pública.
Na FGV, muitos professores eram americanos
ou brasileiros que haviam estudado em universidades norte-americanas.
Desse modo, nos bancos universitários da FGV/EBAP, tive a extraordinária
oportunidade de assistir aulas e palestras de intelectuais notáveis,
tipo... Alberto Guerreiro Ramos, Mário Henrique Simonsen, João Pinheiro
Neto, Kleber Tatinge Nascimento, Diogo Lordello de Mello, Artur Cesar
Ferreira Reis, Márcio Moreira Alves, Cândido Mendes, Riva Bauzer, Fela
Moscovici, e tantos outros.
“Sinésio” sabia que eu trabalhava no
Banco do Brasil – o que não era segredo porque vários colegas do Banco
moravam por ali e, obviamente, ao nos encontrarmos acabávamos falando do
BB e dos nossos serviços. Aliás, acho que, por vaidade inerente aos
jovens, eu mesmo lhe contara que fizera uma pós-graduação em Disciplinas
Bancárias na Universidade de Roma, por interesse do Banco, e na condição
de bolsista do governo italiano.
Apesar de simpático, o pessoal do
bairro não arredava pé de desconfiar que “Sinésio” era ligado ao governo
militar, ou ao SNI, ou ao DOI-CODI ou a outro órgão ditatorial. Na
verdade, ele nunca deu mancada, mas não escondia seu entusiasmo com os
megaprojetos militares da época: Ponte Rio-Niterói, Estrada
Transamazônica, gigantescas Usinas Hidroelétricas como a binacional
Itaipu, a fábrica de aviões EMBRAER, os túneis encurtando a autoestrada
Lagoa/Barra no Rio de Janeiro, dentre outros.
Fim de semana vai,
fim de semana vem, tal como hoje, era costume tomar um copo de mate gelado
vendido por vendedores ambulantes na orla. E “Sinésio”, o senhor educado e
simpático de olhos azuis e cabelos grisalhos, supostamente informante do
SNI, não dispensava o copinho de mate nos dias de praia.
Certo
domingo ensolarado, na altura da “Pizzeria Fiorentina”, “Sinésio” veio em
direção a mim com o seu copo de mate na mão e um canudinho entre dedos.
Sem a cerimônia habitual, mal me cumprimentou e emendou uma fala
entusiástica sobre os novos megaprojetos em curso pelo Governo Militar
(nem sempre utilizo o vocábulo “ditadura” em termos textuais porque me soa
meio obsceno se falado com veemência pausada tipo assim: “Dita-dura”).
Naquele domingo, achei que ele queria me agradar não sei por qual
motivo ou, talvez, pelo que iria dizer em seguida, mais ou menos assim:
“Você, meu caro, que estudou na Fundação Getúlio Vargas, com aqueles
professores notáveis e cerebrais (sic) e, além disso, que fez
pós-graduação na Itália, um país que se reconstruiu rapidamente após a 2ª
Guerra, não acha que, com a seriedade dos militares que atualmente nos
governam, dentro de 50 anos o Brasil será um país tão desenvolvido quanto
aqueles que encabeçam a atual classificação da ONU?”.
Enquanto eu
pensava na resposta, ele deu uma longa sugada com o canudinho no copo de
mate, e ficou me aguardando olho no olho. Segundos depois eu respondi-lhe
numa boa: “Olha só, 50 anos não resolvem nada quanto ao gigantismo e
necessidades básicas do Brasil, e mesmo se houver muito investimento em
educação e em projetos de infraestrutura neste país continental, somente,
talvez, daqui a uns 500 anos...”.
Minha resposta quase gerou
tragédia, pois “Sinésio” ficou tão chocado com o meu frio vaticínio que se
engasgou feio com o mate, ficou muito vermelho, depois arroxeado, e até
perdeu a respiração, a ponto de eu e mais dois amigos que rondavam ali
perto o socorrermos batendo em suas costas repetidamente, e com força,
para desafogá-lo... Enfim, conseguimos que ele se recobrasse do engasgo e
respirasse... Claro que o assunto dos 50 anos morreu ali.
Semanas
depois, por questões familiares, mudei para a Rua Barata Ribeiro em
Copacabana, passei a frequentar a praia na altura do antigo e charmoso
Cinema Rian, entre as Ruas Barão de Ipanema e Constante Ramos. Nunca mais
encontrei, ou mesmo vi de longe, o suposto informante do S.N.I., “Sinésio”
de tal.
Hoje, em 2016, ao lembrar-me do episódio “Sinésio” fiz as
contas dos 50 anos previstos por ele em 1974: então, faltariam somente
oito anos para o Brasil despontar entre os países mais desenvolvidos do
mundo segundo a classificação oficial da ONU.
Infelizmente, meu
vaticínio, na época, foi coerente com a realidade histórica brasileira e
também com o vislumbre da degradação atual do País em 2016, em quaisquer
níveis (moral, ético, político, econômico, educacional, de saúde,
saneamento básico, transportes, rodovias, ferrovias, aeroportos, segurança
pública, justiça emperrada, penalidades vãs etc.), pois somente no ano
2474 encabeçaríamos a classificação da ONU entre os países mais
desenvolvidos. Ou seja, se tudo melhorar, ainda faltam 458.
Extraído do livro a ser lançado: HISTÓRIAS TIPO ASSIM: “WHATS-au-au-au-APP”
(15 de maio/2016)
CooJornal nº 984
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
www.carlostrigueiro.art.br
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|