01/09/2015
Ano 19 - Número 950
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO
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Ignácio despertou com a musiquinha do celular,
foi ao banheiro, lavou-se, escovou os dentes, tapeou a barba, penteou-se,
vestiu-se, calçou o tênis sem marca visível, apetrechou a parafernália de
usos, abusos e costumes na mochila linchada, aliás, surrada.
Na
mochila: marmita lavada e vazia, garrafa térmica com café pingado, cinto
de utilidades duvidosas, óculos escuros fora de moda, lenços de papel,
colírio pra enfrentar a poluição nos olhos, xarope pra rouquidão, envelope
com aspirinas, cópia da cópia do CPF, guarda-chuva portátil de
segunda-mão, terceira, quarta, quinta…
Também na mochila: caneta
esferográfica sem tampa, bloco de rascunho sem riscos, cortador de unhas
cego, digo, por amolar, chaveiro com três peças para abrir ou fechar sabe
Deus o quê, duas cópias da carteira de identidade autenticadas, segunda
via da carteira de trabalho, senhas codificadas pra assanhamentos, um
celular de antepenúltima geração pra uso próprio e outro celular antigo,
dissimulado, pra satisfazer aos assaltantes da vez.
Ainda na
mochila: três contas miúdas a pagar, cento e quarenta pratas salteadas em
notas dez e vinte reais, dois sanduíches de mortadela com cheiro de
véspera, duas mariolas pra sobremesa e um rolo de baseado robusto pra
suportar o sobe e desce do que desse e viesse na vida que leva de “dá ou
desce”.
Fechou a porta do puxadinho emprestado sob a meia-água no
casebre do Tio, beijou a companheira sonolenta, prometeu-lhe que um dia
iriam sair dali, nem que fossem pra outro país, arrastou com o polegar o
suor da testa, afagou a tatuagem do Anjo da Guarda no antebraço e se foi
pela calçada esburacada.
Achegou-se ao quase inteiro meio-fio,
desviou-se dos rolos de fios elétricos roubados durante a noite e à espera
de quem encomendou, evitou os postes tombados pela carreta na semana
passada, chutou cinco vira-latas a farejar, talvez, os seus sanduíches de
mortadela, e esperou a vez de iniciar a travessia da larga avenida
utilizada como rodovia, estrada, rua, trevo, passagem, ou do que a
prefeitura e os banqueiros do jogo do bicho determinassem.
Enquanto
isso, no seu celular, aplicativo pirateado sinalizou chegada de mensagem.
Era do compadre em São Paulo: “Ô meu, já de manhãzinha tá calor aí no Rio?
Pois aqui em São Paulo, mano, tá friozinho e bom pra trabalhar! Já te
falei antes que o Rio é tipo muito osso pra nordestino viver…”. Ignácio,
de esguelha, vislumbrou perigos adiante, atrás, do lado esquerdo, do lado
direito, do lado de cima e do lado de baixo. Digitou que responderia mais
tarde.
Desligou o celular e registrou na memória eletrônica do
aparelho e na sua própria, neurônica, que leria a mensagem completa do
compadre quando conseguisse chegar ao trabalho.
Passaram: a brisa
da manhã, a fome, a sede, o sol do meio-dia, os alísios da tarde, os
medos, a ansiedade, os carros papa-defuntos, os setecentos e noventa e oito
projéteis de vários calibres tirando fino e…
E na cabeça de Ignácio
quase, quase mesmo, passou a vontade de trabalhar no horário noturno das
segundas, quartas e sextas-feiras a manobrar mangueiras semiautomáticas da
oficina “Lava a Jato” em carrocerias de caminhões, carretas, cegonhas,
betoneiras e outras sem-vergonhices motorizadas.
Depois de dez
radiopatrulhas com sirenes em alvoroço e abrindo passagem pra trinta
limusines conduzindo cento e oitenta e nove políticos de trinta e três
partidos distintos, democraticamente eleitos nos municípios vizinhos,
passaram ainda cento e vinte e dois mil quatrocentos e vinte e cinco
veículos legalizados, e oitenta mil setecentos e dezoito ônibus, vans,
táxis, automóveis, caminhões, betoneiras, tratores, guindastes, cegonhas,
motos, moto-táxis, reboques, carroças, papa-defuntos, caminhonetes,
bicicletas, skates, burrinhos com rabo e burrinhos-sem-rabo devendo multas
ou roubados, sucateados, depenados, piratas ou pirateados, mas autorizados
a trafegar livremente por milicianos dominadores daqueles subúrbios.
Na cabeça de Ignácio, o presente virou passado, o passado previu o
futuro, mas o presente voltou de repente. Caminhou –– abaixa daqui e dali,
salta muro, pula mureta, deita assim na caçamba de lixo, deita assado no
jipe depenado –– e alternou, bem treinado, períodos “de espera e se
esconde” atrás de móveis, bagulhos acolchoados com talões do jogo do bicho
e barris de chope vazios jogados ao léu. Percebe à frente um pivete com
faca pontuda. Ignácio se esconde numa parede arriada. E espreita onze
pivetes com facas rombudas, facas miúdas, facas pra tudo!
É
bandido, meliante, traficante, assaltante pra todo lado, maiores e menores
libertos de penas por envolvimento em delitos de ameaça, furto, dano ao
patrimônio, roubo, lesão corporal, sequestro, crime hediondo, estupro e
assassinato, mas legalmente ressocializados conforme códigos, estatutos,
leis, instituições e justiça vigentes que, todo mundo sabe, nada disso
funciona pra valer.
Caminha mais um pouco, abaixado, e vê
prostituta menor por cima de drogado maior numa caçamba de lixo.
Mais à frente: milicianos armados até os dentes cariados.
Ignácio
se esconde atrás de mureta esburacada por tiros de escopetas e fuzis
importados via contrabando oficializado.
Ouve gemidos à beira do
meio-fio: prostituta idosa, chapada, por baixo de catorze menores
estupradores em fila antigamente chamada de “fila indiana”. Três
quilômetros à frente, outros clamores: moradores de rua sem placa e
moradores de rua sem rua a linchar ladrões amarrados em postes sem
resultados do jogo do bicho colados. Sangue e lodo se juntam e, na
linguagem local, “se jantam”.
Quando a noite desplugou o Sol, o Céu
acendeu milhões de estrelas no quarto sem mobília, sem colônia, sem
perfume, sem desodorante, sem talco nem espelho da Lua minguante. No mesmo
instante, milhares de viciados em crack e em outras drogas de pés sujos
pareciam reacender os vagalumes expulsos dos subúrbios pela sociedade
industrial.
Finalmente, Ignácio conseguiu enxergar a passarela
abalroada e estremecida que, pelo alto, cruza a avenida transformada em
rodovia, estrada, rua larga, só o Governo, digo, a Prefeitura, digo, os
políticos saberão.
Naquele lusco-fusco extemporâneo, Ignácio chega
ao que restou da passarela castigada pela carroceria de caminhões com
carga e altura superiores ao permitido e, tão rápido quanto podia,
suspirando, resfolegando, subiu degraus, atravessou e desceu a rampa
inclinada até pisar o outro lado da rodovia, da avenida, da estrada, da
rua larga –– seu Anjo da Guarda tatuado melhor dirá.
De cara,
outros desafios da travessia: saltou, sem vacilo, dezoito bueiros sem
tampas –– roubadas pra venda em ferros-velhos da região. Saltou ainda
centenas de talões do jogo-do-bicho amontoados para distribuição aos
respectivos pontos dos bicheiros.
Finalmente, ao reconhecer que
vencera incólume mais uma vez o início da jornada, lembrou-se de terminar,
no celular, a leitura da mensagem do compadre que vivia em São Paulo.
Jurou que a leria num intervalo do trabalho, talvez numa fuga ao banheiro.
Porém, antes de tudo, agradecido, beijou o Anjo da Guarda tatuado, bateu o
cartão de ponto no serviço do “Lava a Jato” à beira da estrada, foi ao
vestiário, trocou de roupa, vestiu o macacão, e, feliz consigo mesmo,
sorriu por ter realizado mais uma vez a formidável travessia. Mal engrenou
as mangueiras no “Lava a Jato”, Ignácio ligou o celular e leu o resto da
mensagem do compadre:
“Ô meu! São Paulo é tipo assim outro País
dentro do Brasil, entendeu? Tudo aqui é enorme, mas quase tudo funciona ––
fábricas, chaminés poluentes, patrões, trânsito travado, semáforos,
multas, polícia, Justiça e, claro, alguma injustiça e, parece mentira, até
mesmo o clima finge mas não engana! E tem muito mais trabalho com menor
risco que oficina de ‘Lava a Jato’ em subúrbio do Rio.”
“E melhor
ainda, mano: tu não vais precisar tirar passaporte pra fazer a travessia
da fronteira e morar em São Paulo, nem fazer câmbio com os teus
caraminguás, porque o Real aqui vale em todo lugar. E vais poder tomar
tipo umas brejas no fim de semana depois do fu-te-bol, ou pegar um busão
pra trabalhar ou um luxo tipo moto-táxi e, com o passar do tempo, vais
entender a língua tipo paulista, pois eu mesmo só destravei o palavreado
daqui, no dia a dia, com os manos de São Paulo. Então, mano, até por aqui,
valeu ô meu! E, por último e mais importante de tudo: tu vais precisar de
muita coragem pra largar esse ‘Lava a Jato’ de operário carioca, mudar de
palavrório, de horários, de sotaque, de clube de fu-te-bol, de outras
manhas, enfim, de outro país dentro do mesmo país!”.
Crônica publicada anteriormente no ‘CARTA CAMPINAS’
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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com
(1º de setembro/2015)
CooJornal nº 950
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
www.carlostrigueiro.com
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