Pois é:
“Recordo-me daquilo que não queria recordar: e não posso esquecer aquilo que
queria.” (Cícero, 106 a.C. / 43 a.C.). “Memória” é enigma mais antigo e
cismático do que supõe a vã filosofia. Sem entrar na área da memória
artificial de computadores, celulares e afins, ou seja, sem abranger nossa
atualidade caótica que teima em antecipar o futuro, “Memória” seria a
capacidade humana de adquirir, armazenar e recuperar informações e fatos ao
longo de experiências vividas.
Esse aparato orgânico-psíquico capaz de armazenar informações e funções
– movendo milhões de células, neurotransmissores e suas conexões – fica bem
guardado no nosso organismo, ao contrário da exposição de bíceps malhados,
cílios retocados, unhas pintadas, olhos puxados, “barriga de tábua”,
rugas disfarçadas, enfim, da chamada aparência “produzida”…
Aliás, só nos lembramos da existência da “Memória” quando esquecemos o
nome daquela pessoa (“Meu Deus! Estou com o nome na boca…”), ou de um objeto
(“Tenho a palavra aqui na ponta da língua, mas…”), ou quando esquecemos o
Cartório onde temos firma registrada, ou o celular no banco do táxi, ou a
senha do cartão de crédito na hora de uma compra, ou onde guardamos o
Protocolo para pegar o resultado daquele exame médico, ou aquela data que já
foi especial (“Como pude esquecer a data do nosso aniversário de casamento?”),
enfim, esquecimentos que nos obrigam a disparar contra nós mesmos: “Mas fui
esquecer logo isso?” Ou: “Onde foi mesmo que eu botei aquele troço…?”.
Então, podemos dizer que a “Memória” é a base do conhecimento. Os
neurocientistas distinguem dois tipos de “Memória”: a declarativa (que
armazena que algo aconteceu) e anão-declarativa (que armazena
como aquilo se deu). Também explicam que a “Memória” despende muita
energia mental e que, com o avanço da idade, vamos perdendo tal capacidade.
Alterações químicas, doenças degenerativas, depressão grave e traumas afetam
os processos de armazenamento da memória (tal perda seria a “amnésia”).
Quando ocorrem lesões nas áreas cerebrais responsáveis pela “memória
declarativa”, geralmente em pessoas acima de 50 anos, surge uma
forma de demência, e se essas lesões afetam outras partes do cérebro desponta
a enfermidade mais comum: “Doença de Alzheimer”, com perda
gradativa e constante da memória. Outros fatores também podem provocar perda
de memória: alcoolismo, abuso de cocaína, derrames cerebrais, Doença de
Parkinson em estágio grave, dentre tantos
A memória declarativa ou consciente, ou memória de longo
prazo é mais facilmente adquirida, porém mais fácil de perder-se (seriam
os fatos, nomes, acontecimentos, etc.). Nos casos de animais que não falam,
mas, claro, “lembram”, esse tipo de memória é chamado memória explícita.
Não à toa dizemos: “Fulano lembra de tudo, tem memória de elefante!”.
No cérebro humano, o sistema de memória declarativa se
vincula às estruturas da amídala e do hipocampo, ou seja, no lobo temporal
medial. E, claro, há vários tipos dessa memória segundo a dimensão temporal:
memória imediata (dura apenas frações de segundo ou alguns segundos,
tal como decorar o número de um telefone); memória de curto prazo (lembrar
de eventos que aconteceram há poucos minutos como, por exemplo, um acidente de
automóvel ali na esquina); e a memória de longo prazo (que dura dias,
meses, anos, e até, quando envolve muitos anos, ser considerada como
memória de longuíssimo prazo). Mas vou deixar os leitores à vontade para
rebuscarem exemplo bem antigo e marcante na memória! Que tal a data de
aniversário da primeira namorada (ou namorado?).
Por outro lado, a memória não declarativa (também chamada de
procedural) é a que se refere a procedimentos motores (dirigir automóvel,
andar de bicicleta, digitar no teclado do computador, tocar violão, piano,
enfim, um instrumento musical). Esse tipo de memória é mais estável e, ao
contrário da memória declarativa, mais duradoura, inclusive porque a
consciência não tem acesso a tais habilidades
Hoje se sabe que a memória não tem um “habitat” único no cérebro.
De fato, várias estruturas cerebrais atuam no armazenamento e na evocação de
informações adquiridas por sistemas de aprendizagem. No entanto, ainda estamos
engatinhando na complexidade da memória humana, pois há acontecimentos em
nossas vidas que jamais esquecemos, enquanto outros são descartados feito
lixo. Como é que o cérebro faz para estocar um fato e livrar-se de outro?
Entrariam emoções no processo? A memorização de odores, por exemplo, teria o
mesmo processo no cérebro do enólogo que reconhece um vinho pela intensidade
do odor e a de alguém que viveu experiência marcante onde era presente
determinado cheiro inesquecível?
Do ponto de vista literário, muitos escritores repassaram suas
experiências vividas ou delas se valeram como instrumento de criatividade
ficcional em forma de ”Memórias”, e, para citar o mínimo: “Memórias de um
sargento de milícias” (Manuel Antonio de Almeida); “Memórias póstumas de Brás
Cubas” (Machado de Assis); “Memórias de Além-Túmulo” (Chateaubriand);
“Memórias do Cárcere (Graciliano Ramos); “Memórias de minhas putas tristes”
(Gabriel Garcia Marques); “Memórias de uma moça bem-comportada” (Simone de
Beauvoir); “Memórias de Adriano (Marguerite Yourcenar). De outra parte,
escritores que utilizaram o expediente da “Memória” para obras também
notáveis, preferiram dar-lhes títulos diferenciados como “Baú de Ossos” (Pedro
Nava); “Confesso que vivi” (Pablo Neruda); “Recordação da casa dos mortos”
(Dostoievski), e muitos outros.
Finalmente, para não incentivar o leitor a me cobrar, de “Memória”, a
escalação da seleção brasileira que perdeu de 7X1 para a Alemanha em pleno
“Mineirão” na Copa do Mundo de 2014, ou cobrar os nomes dos políticos nos
quais votei nas últimas eleições para prefeito, deputado estadual, deputado
federal e senador, retorno à sábia citação de Cícero no início desta crônica:
“Recordo-me daquilo que não queria recordar e não posso esquecer aquilo que
queria”. Será?
Crônica publicada anteriormente no ‘CARTA CAMPINAS
’
(15 de julho/2015)
CooJornal nº 944
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
www.carlostrigueiro.com
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