Num hipotético passeio cultural, poucos significantes se
prestam a tantos significados quanto o vocábulo “Cabeça”. Antigamente, quando
passava um sujeito inteligente do outro lado da rua, as boas línguas do lado
de cá exaltavam: “ali vai uma senhora ‘Cabeça’!”.
Nos tempos de hoje, cabeleireiros, psicanalistas, marqueteiros e bispos
paisanos das periferias urbanas estragaram o glamour da antiga
concepção literária: “fazer a ‘Cabeça’”.
Na mitologia grega, havia a
figura da Medusa com serpentes na ‘Cabeça’ em vez de cabelos. Mas os machistas
de hoje – ou de sempre – dizem que o mito não vingou nem chegou aos nossos
dias porque era feminino. E argumentam: “Inimaginável pentear serpentes num
ser naturalmente imprevisível!”.
Diz o provérbio: “duas ‘Cabeças’
pensam melhor do que uma”. No entanto – nunca soube se isso era verídico –
diziam que havia uma placa na sede da antiga IBM com a frase: “Se duas
‘Cabeças’ pensam sempre a mesma coisa o tempo todo, uma delas é dispensável”.
Se um sujeito era burro, diziam “fulano tem ‘Cabeça’ de alfinete”. Ou se
era estouvado e imprevidente diziam: “um Cabeça-de-vento”. Se o cara era
teimoso ou birrento, exclamavam: “É Cabeçudo”. ‘Cabeça’ – de – bagre era uma
expressão usada para designar os tolos e imbecis.
Dizem que o Pelé foi
eleito o melhor futebolista e, ainda, “Atleta do Século” porque além de chutar
bem tanto com o pé direito quanto com o pé esquerdo, chegava a levitar para
fazer gols de ‘Cabeça’. Ainda no campo do futebol, o centroavante Baltazar,
nos campeonatos paulistas dos anos 1950, era chamado de “Cabecinha de ouro”
porque fazia muitos gols de ‘Cabeça’. Também nos torneios esportivos,
principalmente na Copa do Mundo de Futebol, é importante e prestigioso o país
ser sorteado como equipe ‘Cabeça’
–
de – chave.
Antigamente, do homem
apaixonado, diziam que perdera a ‘Cabeça’, e da mulher apaixonada diziam que
perdera outra coisa... Entre namorados de outros tempos – quando só havia
dois sexos explícitos, melhor esclarecer – tinha aquela conversa fiada ou
própria à moral da época: “Querida... só a ‘Cabecinha’”.
“... da Mula
sem Cabeça” era uma história contada e recontada para fazer medo às crianças
que remanchavam na hora de dormir.
Dizem que foi a ‘Cabeça’ irreverente
de marqueteiros profissionais, e não a cultura popular tupiniquim, que tachou
o bumbum feminino de “preferência nacional”.
Embora haja muitas
explicações de historiadores, paleontólogos e antropólogos, ainda hoje é
cercado de mistério o verdadeiro motivo de a esfinge egípcia guardiã das
pirâmides ter ‘Cabeça’ de leão.
Nos totens primitivos havia várias
‘Cabeças’ estilizadas, não raro uma acima das outras, em escadaria, ou melhor,
em escala, talvez hierárquica. E a ‘Cabeça’, ou melhor, o crânio dos
inimigos serviu de troféu para os bárbaros europeus beberem cerveja e, dizem,
até para servir de objeto esportivo: no caso, para levar chutes.
Os
índios norte-americanos costumavam escalpelar a ‘Cabeça’ dos inimigos
derrotados guardando o escalpo como troféu em sinal de preponderância e poder.
Mas, por aí, ainda há as temíveis tribos de índios caçadores de ‘Cabeças’ que
num exclusivo processo de cozimento as reduzem de tamanho.
Até hoje,
se um sujeito comete burrice num determinado negócio, diz-se que não teve
‘Cabeça’.
Headhunters (caçadores de ‘Cabeça’) – são uns caras de
terno e gravata – executivos modernos – que caçam, em universidades de
prestígio, alunos com ‘Cabeças’ geniais, a pedido remunerado de grandes
empresas.
No famigerado, clandestino e popular “Jogo do Bicho” no
Brasil, quando o prêmio sai para o primeiro milhar sorteado, a linguagem é
direta: “Deu na Cabeça”.
Quando um torcedor de futebol fica chateado
porque o seu time perdeu feio, diz-se: está de ‘Cabeça’ inchada.
‘Cabeça-de-negro’, antigamente, era uma popular bombinha detonada nas festas
juninas. Hoje, dizer que alguém estourou uma “Cabeça-de-negro” é racismo e
pode dar cadeia.
Diante do exposto, sinceramente, acho mais produtivo
ao leitor do RIO TOTAL ir ao dicionário pesquisar outras acepções para o
vocábulo ‘Cabeça’, porque esta crônica quase cultural está se transformando em
discurso de político brasileiro prometendo, se eleito, baixar o custo de vida
e aumentar os salários dos trabalhadores, ou seja: numa historinha sem pé nem
‘Cabeça’.
Crônica publicada anteriormente no ‘CARTA CAMPINAS’
(15 de janeiro/2015)
CooJornal nº 920
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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