— Pronto minha rainha! Juramento é juramento, eis-me, em
guarda, com as minhas armas naturais.
— Ordeno ao maior herói do reino que suba ao leito, e por merecimento e
glória, trave com sua rainha uma contenda amorosa e real!
E foi assim que, lança em riste, sob o lusco-fusco do pôr do sol, numa
atmosfera real de um lado e irreal de outro, Valderico travou com a rainha
confronto amoroso privativo dos reis.
Noite alta e a lua entre sombras, após o calor da luta, dos infindáveis
movimentos e golpes de parte a parte, sem vencedor nem vencido, desejos
saciados, torpor inevitável anunciou a trégua final. Um silêncio parecia
esmagar a ambos, lado a lado. A atmosfera de sonho começou a dissipar-se. E
como na vida tanto os gozos fruídos quanto os sonhos a desfrutar têm um
preço, um custo, um ônus, ou que nome se queira dar, instalou-se nos amantes
o pêndulo da reflexão que logo se transformou em remorso, depois em culpa,
finalmente em pecado. A rainha espatifou o silêncio contra o teto.
— Valderico, cometemos tremendo pecado!
— Verdade minha rainha, traímos nosso rei, sob a lei dos homens não teremos
perdão, mas eu jurei cumprir tuas ordens… — Achou melhor retornar ao antigo
e respeitoso tratamento — aliás, cumpri ordens de Vossa Majestade…
— Jurastes — isso é verdade, mas eu vos provoquei… e nós dois fraquejamos.
Porém, ainda podemos pedir perdão a Deus, o Senhor de todas as coisas… só
Ele poderá perdoar-nos e aliviar a nossa consciência… talvez uma grande
penitência, uma clamorosa contrição…, talvez um autoflagelamento…
— Que pensais Majestade?
— Tão logo amanheça, irei à abadia. Abrirei o coração ao meu abade
confessor, e ele me dirá qual penitência terei de cumprir para recuperar
minha pureza…
— E eu, que farei? Há anos não me confesso, e jurei que tudo o que
acontecesse aqui não o revelaria a ninguém… Ficarei com este remorso o resto
dos meus dias?
— Fareis o mesmo, ireis ao abade logo depois de mim. Pedireis perdão a Deus
que está acima de qualquer juramento. Obviamente, quando confessardes vossos
pecados ao meu padre confessor, ele já saberá o que cometemos — até será
melhor — e assim somente uma voz pedirá a Deus por nós…
Valderico deixou a câmara real incógnito, pensamentos sombrios e passadas
estreitas. Passadas menos silenciosas do que quanto queria, pois a culpa
agrega peso invisível ao espírito. Então, o que é imponderável parece
adquirir massa, matéria, peso. E surge uma espécie de incômodo corpo dentro
do próprio corpo. Em seu alojamento na torre não conseguiu dormir, assaltado
pelo remorso.
O sol nasceu. A luz do dia ajuda a clarear também as sombras do espírito.
Valderico observou da janela da torre dois servos carregando a liteira da
rainha em direção à capela da abadia. Homem de ação, ele pensou rápido,
desceu da torre e dirigiu-se à capela. Ajoelhou-se atrás de uma coluna e
ficou à espera. Viu quando a rainha terminou o ato da confissão e retirou-se
para cuidar de sua penitência. Valderico apareceu como um raio diante do
abade confessor e pediu-lhe para, também, tomar sua confissão.
— Abre o coração filho!–Disse o abade por trás da treliça de madeira.
— Tenho muitos pecados!
— Abre o coração, filho, todos somos pecadores, confessarás teus pecados a
Deus, e se deles te arrependeres, o Senhor de tudo te perdoará.
— Trucidei quatrocentos e oitenta e nove sarracenos!
— Eram infiéis filho, basta fazeres o pelo-sinal e estarás perdoado.
— Afoguei cento e vinte e cinco cristãos-novos!
— Tardaram a converter-se, reza uma ave-maria e estarás perdoado.
— Tirei a vida de oitenta e dois cristãos, homens de armas!
— Jejuarás por dois dias consecutivos.
— Deitei com metade das mulheres da corte!
— Quantas?
— Acho que umas trinta…
— Quantas?
— Talvez quarenta…
— Então, durante quarenta dias não conhecerás nem deitarás com mulher, será
tua penitência.
— Ia esquecendo, não reconheci dezesseis filhos bastardos!
— Dezesseis ave-marias será tua penitência.
— Deitei com a rainha no leito real!
— O quê? Pecado gravíssimo, filho! Não só aos olhos de Deus! Cometeste alta
traição ao rei, e à própria rainha, mesmo tu, Valderico, sendo o maior herói
do reino poderás ser enforcado e esquartejado! E tua pobre alma arderá no
Inferno eternamente!
— Mas estou confessando meu pecado, e farei qualquer penitência, até mesmo
me autoflagelar!
— Ouve filho, grandes pecados, exigem grandes penitências.
— Então, o que devo de fazer, meu abade confessor?
— Hoje nada farás. Vais e repousa. Mas amanhã, deves tomar um bom banho, com
muitos esfregões nas tuas armas naturais. Em seguida vestirás o teu brial de
cavaleiro. Ao cair da tarde, virás procurar-me, sem que ninguém perceba, em
meus aposentos particulares aqui na abadia. Aliás, será melhor uma hora
depois do pôr do sol.
(15 de outubro/2014)
CooJornal nº 911
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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