Nos tempos da reconquista do solo ibérico aos muçulmanos,
quando pequenos feudos formavam o reino de Leão, as façanhas de Valderico
corriam de boca em boca. Cavaleiro descendente de guerreiros celtas e
visigodos saía-se vencedor em qualquer tipo de combate ou escaramuça. Os
inimigos o temiam. E tremiam ao saber de seus feitos. Granjeava admiração ou
inveja de seus aliados.
Ficando a sua bravura pouco aquém do disse-que-disse — a mídia daqueles
tempos —, a fama do cavaleiro acabara vazando as fronteiras asturianas. E
como cruzar a ponte entre a fama e a lenda era questão de encompridar a
língua, disso se encarregavam os bufões palacianos — marqueteiros medievais
— sabedores de que a mente humana costuma dar pés ao que vê, e asas ao que
imagina.
Enfim, os sarracenos estremeciam ao ver a soberba figura de Valderico
senhoreando sua montaria, com o brial de cavaleiro e a armadura reluzente,
destroçando tendas, barbacãs ou guaritas, e espalhando mortes a golpes de
espada, maça, lança, ou com os próprios punhos. Naquelas liças encarniçadas,
nunca um infiel sobrevivera à fúria do guerreiro asturiano. Tal bravura o
tornara vassalo preferido do rei.
Mas como tudo neste mundo tem seus prós e contras, a distinção concedida a
Valderico nos campos de batalha deixava o monarca pouco confortável na paz
do cotidiano: cobria-o de honrarias ou concedia-lhe favores. As honrarias
seguiam os ritos das justas medievais. Já os favores tomavam caminhos
sinuosos, pessoais, não raro levando o rei a fazer vista grossa aos
caprichos sentimentais do cavaleiro. De fato, além de temível nos campos de
guerra, Valderico era rastreador compulsivo dos fetiches femininos.
Conhecido o lado glorioso do cavaleiro, forjado e temperado nos campos de
batalha, passamos àquelas lides, não menos perigosas, entre as muralhas dos
castelos, nem menos inocentes travadas nos redutos acortinados das alcovas,
sob a pureza contestável dos lençóis.
Ouviam-se nos corredores, torres, paços, pontes, guaritas, muralhas, em todo
o castelo, que raras mulheres da corte conseguiam rechaçar os assédios do
herói.
Numa ocasião, havendo o rei se deslocado às terras galegas, não muito longe
do que viria a ser o caminho de Santiago, coincidiu na ausência do soberano
que o seu vassalo preferido retornasse antecipadamente de vitoriosa missão
contra os sarracenos nas fronteiras ao sul. Mal o herói se desvencilhara das
parafernálias de combate, irrompeu nos alojamentos da armaria do castelo um
mensageiro real.
— Nobre cavaleiro Valderico, trago mensagem de Sua Alteza, a rainha!
Embora surpreso com a presença tempestiva do mensageiro, Valderico não se
alterou.
— Com que mensagem me honra Sua Majestade?
— Sua Majestade ordena-lhe comparecer aos seus aposentos reais, amanhã, uma
hora antes do pôr do sol.
— Diga à Sua Majestade que o seu fiel vassalo, com grande honra, ali estará
na hora aprazada.
Já o mensageiro iniciava mesuras para afastar-se, quando ocorreu a Valderico
perguntar-lhe.
— Aconteceu alguma coisa fora dos costumes à Sua Majestade durante a
ausência do rei? Estou pouco informado, pois estava a combater o inimigo
infiel além das margens do Douro.
— Nobre cavaleiro, apenas sei que Sua Majestade, a rainha, anda maldisposta
nos últimos dias. Agora, se me permite…
— Vá, vá mensageiro, e confirme à rainha o que já lhe transmiti.
No dia seguinte, a natureza cobriu de beijos ensolarados o verde úmido que
ainda hoje engalana os montes asturianos. Valderico preparou-se dignamente,
e dois pajens deram-lhe banho numa tina adaptada ao enorme guerreiro. Sendo
costume somente dois ou três banhos daquele tipo por semestre, talvez por
ano, uma visita aos aposentos da rainha requeria sacrifício de imersão e
esfregões extras.
O pôr do sol fugia pela encosta dos montes, quando Valderico atravessou
garbosamente a ala do castelo que levava aos aposentos da rainha. O brial de
cavaleiro cobria-lhe vestes palacianas. Espada curta embainhada na cinta. A
guarda real reconhecendo o herói, imediatamente deu-lhe passagem nos
corredores sombrios.
O mesmo ocorreu no vestíbulo que antecedia a câmara real, quando cinco aias
que guardavam a entrada reconheceram Valderico. Três delas lançaram-lhe
olhares tão afiados quanto cimitarras sarracenas. Talvez numa tentativa
imaginária de cortar-lhe as tramas do brial, suas vestes, e ver o gigante
guerreiro despido. As outras abaixaram a cabeça com reverência desconfiada,
mas pensamentos suspeitos. Todas suspiraram quando, na passagem do
guerreiro, recendeu o cheiro inconfundível do banho tomado. Mas na cabeça de
Valderico transitou outro gênero de questão, qualquer coisa como a diferença
entre montar selas ou saias.
Vencidos corredores, vestíbulos, guardas e aias, Valderico em carne, osso e
brial, apresentou-se à Sua Majestade, ajoelhando uma das pernas no chão,
como era reverência de praxe nas saudações aos soberanos. Estando a rainha
deitada sobre grandes almofadas no leito, o guerreiro achou por bem
mencionar preocupação com a sua saúde.
— Vossa Majestade ordenou que estivesse aqui uma hora antes do pôr do sol,
pois bem, cá estou, em carne e osso, cavaleiro Valderico de Santullano,
Valdedios, Lena, Oviedo, Naranco e Leon…, mas a minha nobre senhora parece
não estar bem-disposta…
— Cavaleiro Valderico agradeço-vos a presença, mas antes de qualquer
conversa, melhor saberdes que, por minha ordem, entre este pôr do sol e a
aurora de amanhã, todos os meus guardas, servos, aias e camareiras vão
empenhar-se em tarefas longe da câmara real, de modo que, de agora em
diante, tudo o que falarmos, tudo o que aqui ocorrer, tudo o que aqui
fizermos, ficará entre estas frias paredes, nós dois, e Deus, talvez.
Ordeno-vos juramento à rainha!
— A ordem de Vossa Majestade será cumprida por este fiel servo mesmo que eu
tenha de apressar o pôr do sol ou retardar a aurora com a espada que trago
na cinta. Tem meu juramento, nobre Senhora!
— Alça-te! Era o que esperava ouvir do maior herói do reino. Pois, pois,
valoroso e fiel Valderico, durante algumas horas, vamos tratar-nos de tu, e
guarda a tua espada para outras causas… Sabes tu que, desde menina ouço teus
feitos e glórias, e todos falam de ti, e… bem… sempre sonho contigo…
— São exageros majestade, apenas cumpro o meu dever de vassalo preferido do
rei… — Tentou argumentar Valderico.
— Ouve Valderico! O rei está ausente, e pode até morrer nos campos de
batalha, está ficando velho e fraco, e tu sabes que ainda não entrei na
carreira dos trinta. Ora, pois, quero então saciar agora mesmo todos os meus
desejos em relação a tua figura de cavaleiro e herói, quero ouvir de viva
voz aquilo que mais te dá prazer nos campos de batalha, pois o tempo passa e
teus feitos parecem cada vez mais assombrosos, excitam-me a imaginação, caso
compreendas um pouco da alma feminina!
Estando os heróis sempre prontos a enfrentar o inusitado, Valderico pareceu
não se alterar, e maior foi a dificuldade de mudar o tratamento pronominal
ordenado pela rainha do que, naquele momento, apagar do pensamento a figura
do rei. Então, reiniciou o discurso com eufemismos logo envolvidos pela
excitação.
— Exageram minha nobre rainha, apenas luto com denodo por fidelidade aos
meus senhores e à causa cristã. Verdade que herdei de meus ancestrais
visigodos desejo insaciável para o combate, principalmente o corpo a corpo.
E me apraz nos campos de batalha montar meu cavalo, e com a lança retesada
derrubar o inimigo de sua montaria, e… bem, depois sentir o infiel
estremecer por inteiro ao trespassar-lhe minha espada! E também…
Valderico falou, falou, e falou. E tanta era a vibração que instilava na voz
que gotas de suor lhe escorreram da fronte e se infiltraram nas barbas. Mas
como homens de ação são objetivos e não se perdem em elucubrações, logo
constatou que tanta vibração não vinha da fala, mas do falo.
Enquanto o herói discursava, a rainha parecia enfeitiçada. Rito estudado,
soltou os longos cabelos de ouro, livrou-se de almofadas e lençóis, içou o
tronco esbelto e, com movimento estratégico preciso, deixou metade do corpo
níveo cruzar as fronteiras do decoro. Em seguida, passou da estratégia à
tática, apontando agressivamente na direção de Valderico dois aríetes
bicudos e, claro, majestosos. De repente, a boca em arco disparou seta
indefensável.
— Ordeno que tolhas o brial de cavaleiro e todas as tuas vestes, para que eu
possa ver tuas origens celtas e visigodas, tuas armas naturais.
— Majestade!…
— Jurastes…
— Jurei… minha rainha…
Até então nenhuma cimitarra moura fizera zunido semelhante àquele que
Valderico sentiu nos ouvidos. Estratégia por estratégia, tática por tática,
fidelidade ao rei por fidelidade à rainha, vendaval desarrumou-lhe as ideias
por um instante, e como a vida é feita de momentos e, às vezes, há momentos
que valem a vida inteira, a arquitetura celta e visigoda do seu inconsciente
desabou com um grito tribal, interior e milenar: “Guerra é guerra!” E mais
rápido que o voo do falcão, tolheu o brial e despiu-se.
(continua)
(15 de setembro/2014)
CooJornal nº 907
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro@globo.com
www.carlostrigueiro.com
Direitos Reservados