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Os ponteiros do velho relógio
de parede perfilaram-se ao meio-dia, exatamente quando o juiz Bartolomeu,
antigo frequentador, chegou ao pequeno restaurante. No passado, tinha sido
vezeiro em discussões e conversas que rivalizavam em sabor com as iguarias
quase domésticas do cardápio. Mas já de boa data não aparecia por ali.
Ultimamente aprazia-lhe variar de companhias e de restaurantes. E só quando
precisava meditar sobre algum enigma almoçava sozinho. Após olhadela no
recinto tratou de acomodar-se numa mesa mais afastada do burburinho. O que
sabia ser em vão, tais as contidas dimensões do restaurante. Nem bem se
sentou, chamou-lhe a atenção o diálogo que vinha de mesa próxima. Dois
cavalheiros falavam do dia a dia. Não resistiu à indiscrição de ouvir a
conversa, mesmo porque ambos discursavam abertamente. Também não refreou o
impulso de abandonar a mesa escolhida e dirigir-se aos conversadores.
Aproximou-se e, sem nenhuma hesitação diante da curiosidade do par, puxou
cadeira e conversa:
- Com licença, meus senhores, estava ouvindo a interessante discussão sobre
o dia a dia, e como ando perquirindo o assumo, por este ou aquele motivo,
permito-me a liberdade de importuná-los para aduzir algumas impressões.
Penso que o dia a dia vivido na forma como descreveram não passa de uma
masmorra. Por isso, constitui engodo pensar que o dia a dia é um bem e que
alguém o possui. Ao contrário, o suposto possuidor é que se deixa arrebatar
e escravizar por ele. A submissão ao dia a dia tolhe o bom senso do homem. E
sem bom senso o homem se torna um fantoche a mercê das circunstâncias. O
sentido da vida está em modificar o dia a dia, assim como nós mesmos nos
modificamos a todo instante, todos os dias, durante a vida inteira, mesmo
sem percebermos. Até na hora de morrer. Embora disso já tenhamos prestado
contas à Natureza durante todo o tempo. Cheguei à conclusão de que o grande
significado da vida está em dar um destino digno ao dia a dia. Nisso reside
a verdadeira nobreza da existência. Porque, normalmente, todos nós somos
arrolados por nossa visceralidade, nossa circunstancialidade emocional e
imediatista. O destino do dia a dia deve transcender nosso racionalismo
egoísta de sobrevivência. A beleza do dia a dia esta em poder renová-lo
todas as manhãs, modificando-o, retocando-o, aprimorando-o. O dia a dia tem
de ser pluralista e benfazejo. É nosso instrumento, nossa ferramenta para
aprimorar o mundo. Recheando-o de novas e positivas vibrações. Incutindo-lhe
alegria, bons presságios e, sobretudo amor. O dia a dia sem amor é como o
vácuo. É estéril. Nada cria nem prospera. Se não me engano, ouvi falarem que
o Estado havia confiscado o dia a dia. Pois bem, digo-lhes de coração que se
alguém assume que perdeu o dia a dia é porque nunca o encontrou. Nunca. Não
está na mecânica da repetição rotineira o sentido do dia a dia. A
compreensão do que consiste o dia a dia só é possível para aqueles que o
desfrutam na dimensão de uma inteira vida. Ou melhor dizendo, o dia a dia
automatizado, mecanizado que seja não tem essência espiritual. Só tem
matéria bruta. Muito bruta. Não tem anima, não tem alma, não tem
sentido, mesmo porque até os minerais vivem, evoluem, mudam de consistência,
de coloração, de habitat e às vezes até migram e levam junto o
coração de suas famílias... as suas estruturas moleculares, com afiliados e
agregados. E isso acontece no tempo. O tempo é uma dimensão ainda não bem
entendida pelo homem comum. Para entendê-la, superficialmente, o homem comum
adotou sistemas de mensuração que são baseados no raciocínio lógico e na
observação das incidências fenomenológicas que por sua vez obedecem a
critérios simbólicos como as estações, o ano, o mês, as horas, o dia e
finalmente o dia a dia. Mas poucos percebem que o dia a dia é nascer,
crescer, viver, morrer e renascer sempre. É um ciclo completo. É a vida
inteira concentrada numa dimensão miniatuarizada pelo vão artificialismo do
homem. É necessário compreender que o dia a dia tem um sentido, uma direção,
um destino. Isso, um destino. Ora, o destino está numa dimensão muito
superior ao tempo e espaço - as dimensões basilares do homem comum. O
destino é a fatalidade, o fatum, o karma, zadig ou como
queiramos chamar em outros idiomas. Mas o fato é que o dia a dia tem um
destino muito maior que nossa compreensão materialista e imediatista. E
qualquer coisa que comporte o destino em sua acepção maior deixa de ser
perceptível, mensurável, aferível. Caso contrário, não estaríamos nós três
aqui reunidos numa mesinha de restaurante opinando sobre o dia a dia. Alguma
coisa mais poderosa do que nós e nossos objetivos, em geral egotistas, nos
reuniu em nosso dia a dia. Talvez as mesmas apreensões, as mesmas
preocupações, a mesma sintonia com algum problema comum a nós três. Falando
tanto, esqueci de apresentar-me, sou Bartolomeu e os senhores?
- Bem, eu sou Justiniano, advogado do meu cliente aqui ao lado, o Sr.
Junqueira. Muito prazer - disse o advogado, e acrescentou: - Mas e o
cavalheiro que fala tão bem é um político? Seu semblante não me e totalmente
desconhecido.
- Ah, sou juiz. Juiz federal. Fui investido nisto pelo Estado - arrematou o
magistrado.
- Curiosa coincidência - inseriu-se o aposentado - estamos pleiteando a
devolução de meu dia a dia junto à justiça federal, por motivo de
aposentadoria - franzindo as nervuras da testa, acrescentou reticente: -
quase à revelia...
- Sob o crivo da lei antecipo que e absolutamente impossível ao Estado, até
mesmo presumir restituição de tal imponderabilidade - aduziu firme o juiz.
- Talvez, quem sabe, demande algum tempo, requeira perícias, análise
documental, convocação de testemunhas etc. - tentou ponderar o advogado,
meio circunspecto.
- Não creio - disse ainda mais sério o juiz. - Há certos casos que fogem às
prescrições, é verdade, requerem jurisprudência, onde entra inevitavelmente
o enfoque interpretativo dos juristas sob ótica mais abrangente do que a dos
códigos legais. Procuram os doutores da lei, nesses casos especiais,
deliberar com o propósito de solver não só a causa em si, mas também aplicar
princípios benéficos ao aperfeiçoamento da sociedade e da própria
civilização. Sem nenhum constrangimento, reafirmo que se alguém reconhece
haver perdido o dia a dia, é porque não só nunca o encontrou, mas também não
mereceria recuperá-lo.
- Mas isso é discriminação com um ser humano, digamos que, como todos nós,
ainda não é um ente perfeito e acabado, está aprendendo, evoluindo,
retocando-se... - ponderou o advogado.
- E além do mais, fez tudo aquilo que deveria fazer na vida com a melhor das
intenções - aduziu o aposentado.
- Sei, sei - começou a replicar o juiz -, mas a questão é que se examinarmos
ao redor, constataremos que todos os seres, animados ou inanimados, têm uma
finalidade precípua, neste mundo de Deus. E esta finalidade é onisciente.
A formiga que prepara sua horta subterrânea, a cigarra que saúda o
crepúsculo, o morcego que macula o fruto, o mocho que anuncia a noite, o
pássaro que bica estames, os grãos de pó1en que perpetuam as espécies, a
chuva que fecunda os prados, os peixes que se multiplicam, a nuvem que
passa, o vento que sopra, o mosquito que zune, a cascata que flui, o
sacerdote que prega, o medico que cura, o advogado que acusa ou defende, a
criança que choraminga, a mulher que vai parir, o seio que apascenta, o
déspota que manda, o escravo que obedece, o bárbaro que faz ou desfaz, o
político que constrói ou devasta, o pensamento do líder que orienta ou
desatina. Enfim, tudo tem sua finalidade. E toda finalidade é dia a dia, é
existência, é destino. Isso não se perde. É inerente a quaisquer tipos de
seres e a qualquer ação deles redundante. Mais que isso: o dia a dia é o
futuro, o porvir. Não se pode perder o que ainda não aconteceu. O passado e
o presente não existem em termos de dia a dia. Só o futuro.
- Então - apressou-se o aposentado para questionar - não posso recuperar o
dia a dia por que ele ainda vai acontecer?
- Isso mesmo, o destino do dia a dia tem de acontecer ainda, ou ser
construído, se imaginarmos que o homem primeiro concebe isso no pensamento,
diferentemente dos outros seres.
- Para concluir - disse o advogado -, são muito remotas as chances de se
obter na justiça ganho de causa para o meu cliente e recuperar-lhe o dia a
dia. Ao menos nos termos em que recorremos, ou seja, com base num presumido
dano infringido à rotina de sua vida?
- Perfeito, meu caro advogado. Asseguro-lhe que, aplicada toda e qualquer
juridicidade, e um mínimo de bom senso, a petição seria denegada em caráter
irrecorrível.
- Que acha disso? - Perguntou o advogado ao aposentado, quase com ar de
satisfação pelo que tinha ouvido do juiz.
- Bem, se o meu dia a dia não puder ser recuperado intercedeu o aposentado,
talvez tenha chance de ganhá-lo mais para frente. Afinal, se o dia a dia é o
futuro, quem sabe o juiz que julgará a questão pensará de modo diverso? Quem
sabe não sucederão fatos novos, mutações sociais, novas leis etc.?
- Não creia nisso. Embora não seja ético, diante da questão tenho de
antecipar-lhes algo mais. Portanto, adianto-lhes que esse caso acaba de ser
julgado. E "Improcedente" foi o veredicto.
- Mas até esta manhã não havia sido julgado, informaram-me do tribunal -
articulou o advogado.
- Acabo de fazê-lo, meus senhores. O caso veio parar em minhas mãos. Pelo
inusitado, precisei trazê-lo para fora da atmosfera processual e jurídica.
Tem andado comigo para arejar-se. - E abrindo uma pasta de couro,
mostrou-lhes o processo. Puxou uma caneta do bolso do paletó e escreveu:
"Improcedente."
- Mas o senhor deveria ter-nos avisado que estava realizando o julgamento,
ao menos poderíamos argumentar de modo mais ordenado - disse quase
enrubescido o advogado.
- Melhor que tenha sido assim - intercedeu o aposentado - pois acabo de
sofrer uma mutação psicológica. A partir deste encontro, desta
extraordinária coincidência, já não me acho como o homem que perdeu o dia a
dia. Vejo que faz sentido nosso dia a dia aqui juntos. E se o dia a dia não
é o que passou, mas aquilo que podemos fazer acontecer, não o perderei nunca
mais. Meu dia a dia não poderia ter tido melhor destino. Amanhã mesmo vou
acionar o Estado para que não se intrometa com o futuro da Repartição.
Enquanto viver, lutarei por isso.
***
Quando a imagem dos três
interlocutores se dissipou na névoa dos sonhos, o juiz Bartolomeu, meio
sonolento, calou o despertador com um toque justo.
E quando a miragem dos três interlocutores se desfez na bruma dos sonhos do
aposentado Junqueira, este, meio entorpecido, silenciou com uma palmadela o
ruído do velho relógio.
Por sua vez, quando o vulto dos três interlocutores se evaporou na quimera
dos sonhos, o advogado Justiniano, modorrento, recobrou-se na poltrona com o
que lhe pareceu ser um rumor de campainha.
A Ciência ainda conhece bem pouco sobre a interatividade dos sonhos de
várias pessoas. No futuro, saberemos mais. Melhor dizendo, no dia a dia do
futuro.
Do livro "O Clube
dos Feios",
Editora 7 Letras, 2ª edição, 2013.
(01 de setembro/2014)
CooJornal nº 905
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro@globo.com
www.carlostrigueiro.com
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