O Sr. Junqueira pressionou a campainha do antigo escritório e foi recebido
por uma secretária de meia-idade que o reconheceu imediatamente. Adentrou o
recinto com a sensação de estar sendo observado do alto das estantes pelas
austeras e impecáveis coleções de leis. Após cruzar duas antessalas,
enxergou o vulto crescente do advogado sobre uma poltrona, estendeu-lhe a
mão e quase abruptamente iniciou conversa:
- Estive pensando, Dr. Justiniano, que junto com o meu dia a dia perdi
também poder.
- É mesmo? - Pigarreou ligeiramente o advogado, acrescentando - que espécie
de poder?
- Ora, poder burocrático! Aparentemente pode não representar muito, porém,
em certas ocasiões, faz do burocrata um potentado. Afinal de contas, no meu
dia a dia tinha poderes para dispensar do trabalho pessoas adoentadas,
liberava mais cedo aqueles que necessitavam sair, assinava autorizações para
pequenas compras de material de expediente ou outras minúsculas despesas
extraordinárias. Antecipava ou adiava reuniões. Atendia chamadas telefônicas
para explicar
muitas vezes o óbvio, porque como sabe há pessoas que se comprazem em
perguntar por telefone e só por telefone. Porém, só alguém com a autoridade
calcada no poder é capaz de satisfazer tais demandantes. Autoridade não é
poder? Que mais? Ah, detinha o segredo do cofre da Repartição há mais de
trinta anos. Como chefe do setor, também custodiava a cópia de todas as
chaves de todas as gavetas, escrivaninhas e armários. Se sucedia a alguém
perder uma chave, ou tê-la quebrada tinham de vir a mim... É isso mesmo, Dr.
Justiniano, as pessoas só pedem a quem pode dar. E eu podia tanto! Os mais
novos pediam-me conselhos, os faltosos pediam-me desculpas, os mais antigos
pediam para não serem incomodados, os fuxiqueiros pediam-me
confidencialidade de qualquer modo todos me pediam alguma coisa.
- Reconheço que há algum sentido no que diz, nem é preciso ser um Max Weber
para entender a natureza do poder burocrático, meu caro Sr. Junqueira, mas
esses aditivos não trazem fato novo à essência da questão.
- Lógico que trazem, pois a essência da questão é isso: castraram-me o dia a
dia - e o exercício do poder burocrático era parte importante do meu dia a
dia. De repente tudo isso se evaporou; o meu vibrante dia a dia se
transformou numa "noite a noite' silente. Esse tipo de poder tem muitas
facetas: assinar papéis, por exemplo, - sejam autorizações corriqueiras ou
justificativas dispensáveis, ou papéis que cancelam papéis logo revigorados
por outros que a seguir serão cancelados; apor um carimbo ao lado, acima ou
abaixo de outro carimbo na escala hierárquica processual; criar novos mapas
de controle sobre os volumes de serviços sobre as metas, ou sobre o controle
dos controles. E também representar a entidade em bons e maus momentos. Fui
a centenas de funerais, sem nunca ter visto os defuntos em vida - mas sempre
representando a Repartição. E a casamentos, cerimônias de noivados, de bodas
de prata, batizados, primeiras comunhões, festas juninas com ou sem balões e
fogueiras; fui a ensaios de escolas de samba que se preparavam para o
desfile glorioso nos dias de Carnaval, a churrascos e feijoadas com ou sem
motivo de comemoração... e tudo o mais... Na maioria dos casos não me
conheciam como pessoa - eu, Junqueira nem eu conhecia a tantos fulanos, mas
meu aperto de mão como 'chefe da repartição' era sempre bem-vindo, aguardado
pelos fotógrafos e, algumas vezes, cheguei a ser entrevistado por colunistas
de jornais.
- Sei, sei disse o advogado, adotando com as mãos posição sacerdotal -, mas
durante tantos anos de carreira, o senhor não se perguntou uma única vez
sobre o futuro pós-profissional, o fim da carreira, o tempo de descansar na
velhice? Hoje há até cursos de preparação para a aposentadoria...
- Sei que em países mais adiantados há preparação, quase que treinamento,
para assumir o processo de desativação profissional. Mas nesses países a
perspectiva de vida é maior, de fato é necessário preparar uma multidão de
idosos para a inatividade. Por outro lado, sei que no Japão, por exemplo,
ex-funcionários tornam-se consultores da antiga empresa a que serviram, ou
assumem posição de conselheiros honorários. Nos Estados Unidos, muitos
aposentados se tornam palestrantes e conferencistas - transmitem às elites
emergentes ensinamentos baseados na experiência que viveram; enfim, não
desaparecem, ou melhor dizendo, não têm o dia a dia totalmente extirpado.
- Continue Sr. Junqueira, - encorajou pacientemente o advogado.
- Ah! Recordo as reuniões de trabalho do dia a dia com início remarcável e
encerramento imprevisível. Algumas intermináveis, claro. Era certo (ou
errado) que em muitas delas se falava de tudo, mas nunca daquilo que se
devia. Também se discutia o indiscutível, mas eram reuniões de verdade. Sim,
porque havia reuniões fictícias que serviam de desculpa ou esquivo, quando
se evitavam telefonemas de algum chato, ou a insistência de funcionário
hierarquicamente inferior precisando despachar processos melindrosos. Havia
também nos recintos destinados aos serviços de recepção e telecomunicações,
algumas secretárias abelhudas - geralmente apadrinhadas por algum notório
figurão -, que espichando olhares e ouvidos curiosos, auscultavam mentiras
domésticas e verdades extraconjugais. Daí aos cochicheios, bastava a ação
catalisadora da hipocrisia. Dependendo da emulação, mentiras vazavam como
verdades e falos consumados transpiravam sob a forma de probabilidades.
Aqueles cochichos, no que tinham de bom ou de ruim, temperavam o desenrolar
do expediente e tornavam a rotina da dia a dia menos insossa - fraseou
melancólico o aposentado.
- Vejo que o seu dia a dia - interveio o advogado - apesar de constituir um
mosaico de eventos, ações e reações, mantinha certa estabilidade. Seria
decorrência da estabilidade do servidor público no emprego?
- Reconheço que a estabilidade tem efeitos ambíguos. De um lado, cria
condições emocionais para a realização de um trabalho com maior precisão,
pois está isento de pressões como a competitividade, por exemplo; de outro
angulo, ela pode favorecer o marasmo, principalmente na criatividade, por
falta de estímulos. Porém, a condição de privilégio da estabilidade é
absorvida no dia a dia. Ninguém pensa mais nisso. Não surgem ilações sobre o
assunto. O dia a dia se torna mais importante que o salário, a carreira, o
futuro...
- Acho que o dia a dia despendido de modo burocrático. como o do servidor
público obcecado pela repartição é massacrante e a alienador, um
entorpecente feito de tempos e movimentos repetitivos e paradoxalmente
inacabáveis - avançou de modo conceitual o advogado, mas nitidamente
provocativo, como se tivesse alguma ideia em mente. E continuou: Daí,
talvez, ser necessário nunca se entregar a suas aparentes mutações diárias,
porque de fato nada está mudando. O dia a dia apenas se apresenta com
indumentária trocada. Faz-me lembrar do presidiário que todos os dias muda
de roupa mas usa sempre o uniforme listrado.
- Nunca pensei nisso, talvez tenha razão sobre o dia a dia burocrático.
Realmente a natureza do trabalho não credencia ninguém a grandes vãos,
aliás, já lhe disse que a criatividade..., mas por que a comparação com o
uniforme de presidiário? Afinal todo mundo tem que ter seu dia a dia, seja
presidiário ou...
- Desculpe-me interrompê-lo - disse o advogado olhando o relógio de pulso
mas gostaria de convidá-lo para almoçar Podemos ir a um restaurante
português aqui pertinho. Comida quase caseira. Não vou lá faz muito tempo.
Antigamente era lugar frequentado por advogados e magistrados porque próximo
ao Fórum de Justiça. Pura conveniência. De qualquer forma gostaria de sair
um pouco. Essa conversa sobre o dia a dia incitou-me o espírito a fugir da
rotina. Se concordar, continuaremos a conversa durante o almoço.
- Claro, claro, está bem, aceito o convite com muito gosto. Aliás, é o
primeiro depois que, desculpe a insistência, perdi meu dia a dia. Vamos
andando que a hora é boa, quase meio-dia.
(continua)
Do livro "O Clube
dos Feios",
Editora 7 Letras, 2ª edição, 2013.
(10 de agosto/2014)
CooJornal nº 903
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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