* * *
O tique-taque do velho despertador deu a
impressão de ter ficado mais forte.
Lembrava passos resolutos vencendo algum corredor assoalhado e comprido.
talvez, naquele finalzinho de sonho, o Sr. Junqueira hospedasse imagens de
alguém usando botas. Mas a aparente passada foi de tal modo se aproximando que
desencovou de vez o despertar do recém-aposentado. O relógio não chegou a
soar. Um braço velejou nas trevas e ancorou a mão sobre a campainha do
velho relógio desarmando-lhe a engenhoca. O dia ainda ensaiava requebros de
luz sob a cortina da madrugada. Como de hábito, Junqueira alçou-se lépido,
apesar de seus bem orçados sessenta e tantos. Higiene, ginástica ligeira,
fluxo e refluxo de água corrente, gorgolejos e tossidelas alternaram-se. Mas
foi só quando a espuma do creme de barbear se rendeu aos sulcos provocados
pelo deslize da navalha, deixando renascer parte do rosto frente ao espelho,
que se deu conta da realidade mais uma vez. Estava procedendo como vinha
fazendo há quase meio século. Com certa pressa. Melhor dizendo, com aquela
obrigatoriedade ao mesmo tempo prazerosa e compulsiva de encontrar-se com o
dia a dia de trabalho na Repartição. Fixou o olhar na sua imagem refletida no
espelho e inquiriu-se: "Qual o motivo desse ritmo matinal acelerado se já
estou aposentado há quase três meses?"
Continuou barbeando-se. Enquanto reduzia agilidade nos movimentos e pressão no
escanhoar, os pensamentos se adensaram sobre todos aqueles anos dedicados ao
trabalho. Os hábitos adquiridos pela repetição, pequenas manias sedimentadas
na rotina diária, comportamentos fisiológicos condicionados, processos
mnemônicos para reter número de portarias, textos de decretos e instruções
circulares. Empunhando a lâmina ora a favor, ora a contrapelo rememorou a
dinâmica do ir e vir - os tipos de transporte que utilizara de casa para o
trabalho e vice-versa. Bondes, ônibus sanfonados - ah! Os papa-filas -,
micro-ônibus, ônibus importados e com ar refrigerado - ah! Os frescões -,
também os ônibus sem ar refrigerado que o humor carioca batizara como "quentões"
e, finalmente, o metropolitano moderno. Fez desfilar na memória: os ternos que
usara ao longo da carreira; as gravatas com matizes, fantasias e medidas
diversas; as pastas de couro surrado repletas de papéis caducos e anotações
superadas; a maletinha modelo 007 e suas variações, carregando pra lá um
bocado de objetos inúteis, e pra cá outro tanto de coisas dispensáveis. Ao
reprovar intimamente os volteios da moda meneou levemente a cabeça. O trejeito
distraído custou-lhe um arranhão sob o queixo. Detestava cortes durante o
barbear. Mas o pensamento já ia fundo e desencravou da lembrança o que os
técnicos da administração eletrônica chamavam de evolução ergonômica. E num piscar de olhos
recuperou imagens de mesas de vários tipos e tamanhos, de arquivos leves e
pesados, máquinas de escrever e de calcular mecânicas, elétricas, eletrônicas,
os primeiros e enormes computadores, depois os de tamanho médio, e finalmente
os maravilhosos microcomputadores que valiam por um escritório completo.
Ao rememorar o dia a dia de seus bem-vividos ambientes de trabalho
constatava, orgulhosamente, que sempre conseguira valorizar o elemento
humano, colocando o calor das relações pessoais acima da frieza
institucional e da vetusta burocracia que estigmatizavam a empresa pública -
uma coisa de todos, mas também de ninguém. Reconhecia, agora, as invisíveis
forças de interação que regiam as pessoas independentemente dos cargos que
ocupavam e, melhor ainda, os pontos de afinidade entre colegas do mesmo
nível hierárquico. Ah! A magia do intervalo para o cafezinho - ocasião em
que ora anedotas, ora desabafos sobre relações de trabalho desanuviavam
pesadas atmosferas. As saborosas gozações das segundas-feiras que tingiam de
mofa os comentários apaixonados sobre o clássico de futebol jogado domingo;
os bate-papos regados a chope com aura de espuma generosa, após o expediente
das sextas-feiras - quando se desfiavam posições opostas aos leguleios da
Repartição, em lengalengas entremeadas de tira-gostos picantes e histórias
luminosas nos bares do Centro. Os processos urgentes que vez ou outra levava
para casa nos fins de semana. Enfim - pensava - tudo aquilo, ou seja, o seu
dia a dia lhe tinha sido arrebatado com o advento da aposentadoria.
Enxugou o rosto às apalpadelas com a toalha de pelo arrufado, soprou a
umidade que dominava as lentes dos óculos e tornou a encarar-se no espelho.
Já barbeado e dispersando perfume, penteou a cabeleira lívida e inquiriu
ainda uma vez a própria imagem, agora desfocada pelo uso incorreto das
lentes. Corrigiu o ângulo da visão e avizinhou-se do espelho tentando
equilibrar as hastes dos óculos sobre as orelhas a fim de aparar com uma
tesourinha os pelos que emergiam do nariz. Inquiriu-se fundo, mas com
respostas rasantes - e que, em verdade, eram as mesmas perguntas, como fazem
os que querem se desculpar a si mesmos. "Que tinha ele na vida? Pouco."
"Mulher? - Já nem se lembrava do divórcio." "Filhos? - Casaram e sumiram
pelo Rio Grande do Sul." "Netos? - Só os conhecia por fotos e imagens de
vídeos." "Parentes? - Talvez elos perdidos lá pelo interior." "Um
apartamento modesto de três cômodos? - Não valia grande coisa." "Um pedaço
de terra escondido pelas bandas da Mantiqueira na divisa com Minas Gerais e
que recebera por quitação de dívida; ora, que poderia valer aquele rincão? -
Pouco, muito pouco." "Haver atingido o último posto da carreira há mais de
vinte anos? - Aquilo valia uns trocados, nada mais que isso." "Amigos? -
Ora, esses, em maioria, pertenciam aos quadros da repartição, foram
transferidos para outros departamentos, outras cidades, ou foram se
aposentando, desaparecendo, morrendo disso e daquilo." "Experiência da vida?
- sim, tinha bastante, mas de validade duvidosa em termos de aplicação em
outrem." "Conhecimento da burocracia do serviço público? - Nisso era doutor,
mas para que lhe serviria tal sabedoria como aposentado?" Enfim, o ciclo de
perguntas e respostas fechava-se sobre si mesmo. E a conclusão de tudo e por
tudo era insofismável. Tudo o que realmente havia construído durante a vida
inteira, acumulado de grão em grão, minuto a minuto, como a mais fabulosa
das fortunas era o dia a dia. O fruir do dia a dia. E aquilo lhe fora
tomado. E pior, sob auspícios da lei.
Meteu-se no terno mais novo. Comprara-o em prestações um ano antes da
aposentadoria. Vestiu-se com sobriedade, mas com ar magnânimo - como se
ainda fosse trabalhar. Decerto, tinha encontro importante. Trabalhava agora
para sua causa. Sob a égide da lei e tutela da democracia. Sim, estava
recorrendo. Constituíra advogado e ingressara em juízo contra o Estado. A
experiência da vida e o recente sentimento de indignação instigaram-lhe o
espírito. Pensava, enfim, "justiça não é só lei, é também (sobretudo em
alguns casos) interpretação da lei - o Estado não podia, dentro dos fiéis
princípios democráticos, aniquilar seu único bem verdadeiro, o qual
carregara como um filho marsupial durante meio século, isso, isso mesmo, o
Estado não lhe podia tomar o dia a dia." Recendendo a perfume brejeiro,
fechou a porta do apartamento e tomou o rumo do encontro com o advogado.
O causídico era um sujeito experiente, e conhecia bem tanto os textos legais
quanto a matreirice do ofício. Poderia ter recusado a inusitada causa logo
na primeira conversa com o Sr. Junqueira, há coisa de três meses. Na
ocasião, explicara ao inconformado ex-servidor que nas lides envolvendo o
Estado qualquer processo era muito demorado, e que a própria natureza da
causa só teria razão de ser se houvesse solução imediata - o que implicava
dizer já ir avançando em idade o reclamante. Mas o advogado - Dr. Justiniano
- sabia ser inútil tentar demover o aposentado logo de início. Conhecia bem
a estrutura psicológica dos homens de terceira idade - ele que já entrado
nos setenta, havia se defrontado com tantas birras e teimosias. Preferiu
acatar o pedido e esperar que a 1ógica da vida, muito mais ampla que a da
justiça, trouxesse paz ao espírito do Sr. Junqueira. Enquanto isso ia
dando-lhe notícias sobre o andamento do processo. Por outro lado, já havia
visto e vivido o suficiente para admitir que casos com solução
extraordinária não nasciam de questões ordinárias. O Sr. Junqueira
parecia-lhe uma pessoa, no mínimo, diferente. As pessoas diferentes podiam
não fazer o mundo melhor, mas tiravam-no da indiferença. O que de pior há no
mundo (pensava) é a indiferença das igualdades. Por isso simpatizara com o
cliente. Além do mais, aquela questão de perder o dia a dia também lhe vinha
acenando há algum tempo. Era bom ter escolhido uma profissão liberal como a
de advogado. Cumpria os recolhimentos legais para o fundo de pensão do
Estado e contribuía para dois outros de natureza particular, com o intuito
de compensar as parcas projeções do primeiro. A condição de profissional
liberal proporcionava-lhe certa independência quanto ao momento de
aposentar-se. Se quisesse isso, claro. Também poderia trabalhar até morrer.
Se necessitasse trabalhar, obviamente. Ou poderia ir parando aos poucos. Uma
causa aqui, outra bem adiante. Só causas escolhidas. De preferência,
inusitadas. Nesse aspecto, considerava haver abraçado uma profissão
privilegiada. Dependia de si mesmo. Até quando seria capaz de advogar? A
rigor, nem precisava de muita estrutura no gabinete. A biblioteca era rica e
as assinaturas dos periódicos especializados supriam-no de atualizações
indispensáveis. Por telefone, acionava antigas amizades nos tribunais e
cartórios a fim de inteirar-se do andamento dos processos. O escritório no
Centro era à moda antiga, como na Europa, ocupando uma parte da própria
residência. Não tinha necessariamente de locomover-se, não dependia de
transportes, de condições de trânsito, nem de exigências climáticas. Não
sofria de desgastes emocionas. Tampouco de transtornos viscerais. A
governanta, que também servia de secretária, encarregava-se de prover
diariamente a mesa, periodicamente a despensa e de modo esporádico o leito
conjugal. Isso desde que enviuvaram. Ele e ela. De per si. Cada um perdeu
seu par. Com diferença de semanas. Fazia as refeições ali mesmo. Muito raro
ia a algum restaurante, e quando acontecia era sob especial inspiração.
Tinha um dia a dia estável o bastante para dedicar-se à leitura, ou a ouvir
música, quando bem lhe aprouvesse. Não havia se questionado a fundo sobre o
sentido ou destino do dia a dia até conhecer o Sr. Junqueira. Desde então, o
assunto espicaçava-lhe o espírito. Tinha vontade de receber o aposentado
mais uma vez. Conversar um pouco sobre aquela questão do dia a dia, não
tanto do ponto de vista jurídico, mas, sobretudo sob a ótica do ser humano
que envelhece, mais e mais, e aproxima-se do desconhecido e que, a rigor, a
rigor, é por todos bem sabido e reconhecido. Por isso, no dia seguinte, iria
receber o insólito cliente outra vez. Afrouxou-se na poltrona e relaxou a
respiração. Pálpebras pesadas fizeram o resto.
(continua)
Do livro "O Clube
dos Feios",
Editora 7 letras, 2ª edição, 2013.
(25 de julho/2014)
CooJornal nº 901
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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