Conjecturava agora em bases reais.
"Precisava preparar-se para a aposentadoria. Tinha lido muitos estudos sobre
como o assunto era tratado nos países desenvolvidos. A fase de preparo para o
retirement, como diziam os americanos. Ou andare in pensione na
classificação dos italianos. Na Alemanha e no Japão havia até cursos
preparatórios. Conhecia o assunto na teoria. Agora, tinha de aprender na
prática, pois estava chegando sua vez. Logo ele que, há cinco anos somente,
nunca havia pensado em como seria o day after - a vida de aposentado. Em
verdade, a maioria dos indivíduos faz a vida social em volta do ambiente de
trabalho, dos colegas de trabalho. Os segmentos da sociedade que as pessoas
frequentam se relacionam com o trabalho. A maioria não constrói ambientes
alternativos. Não frequenta outros grupos, nem interage com pessoas de outros
ambientes e atividades. Sim, precisava diversificar-se cultural e
intelectualmente. Viajar pelo interior e sertão, ver a zona do Pantanal, as
cidades coloniais de Minas Gerais, o cerrado goiano. Cruzar o Atlântico.
Visitar museus. Sorver a cultura da Europa clássica. Frequentar amostras e
exposições de assuntos variados. Ver arte moderna, admirar pintura
impressionista, esmiuçar a arquitetura pré-colombiana, saber de música
barroca, de escultura contemporânea, de historia das artes marciais. Devia
participar de movimentos pró-ecologia, de renovação do chamado teatro novo, ou
de recuperação do cinema de arte, ir a concertos beneficentes, a shows
de música pop -, lógico que não dava para fazer tudo! Mas ampliar a
percepção do mundo era absolutamente necessário, a fim de que não ficasse
escravo do trabalho, do ambiente do trabalho, dos grupos do trabalho e da
lógica do trabalho. O mundo é muito rnaior do que o trabalho. A vida é para
ser vivida em sua amplitude global. Ars longa, vita brevis! medite-se
sobre a filosofia de Sêneca. Bem a propósito. Podia encher páginas e páginas
de adágios latinos, mas isso seria de grande valor quando aposentado? Teria,
alias, algum valor? Qualquer vicissitude? De fato, isso era quase para
filosofar; o homem raramente durante a vida é totalmente livre. É sempre
escravo da ordem e por que não da Lei? E ele, um juiz, estava pensando assim,
isso mesmo, renegando princípios de ordem, de juridicidade, até mesmo alguns
princípios de civilização. Por que isso? Talvez discutisse, naturalmente,
anseios de sua alma mesma, porque a lógica da vida está acima da lógica dos
homens. A lei era um código interpretativo da lógica dos homens e, portanto,
num nível inferior à lógica da vida - que está no plano divino."
E continuou monologando intimamente. "De repente, aparecera aquele processo em
juízo. Um funcionário público - como eu - rebelara-se contra a perda do dia a
dia causada pela aposentadoria; queria reintegração - se se podia chamar assim
- no fundo, desejava voltar a trabalhar e, tão estranho quanto pudesse
parecer, o advogado outorgado pelo reclamante mencionava uma expressão que
ainda não vira antes, dizendo que o homem perdera o dia a dia. De resto, o
outorgante era o tal sujeito, o homem que perdeu o dia a dia. Aquele assunto
tinha muito a ver comigo mesmo, a pessoa Bartholomeu, não com o juiz, claro. À
luz da lei, era sutil julgar o caso, difícil era julgar como ser humano e,
ainda mais difícil, quando eu mesmo começava a ser assaltado por questão
semelhante. Precisava de tempo para pensar. E o tema, por si só, inspirava
bela discussão."
Pegou o cachimbo, encenou longa pitada e soprou outra aura de fumo imaginária,
que foi crescendo, crescendo, passou pela vidraça da janela semiaberta,
extrapolou os quadrantes do rio Madeira e foi aumentando, aumentando, ganhou
os céus e perdeu-se numa encruzilhada da Via Láctea. Era hora de
reconciliar-se com o sono. O dia seguinte, com certeza, aportaria outros
enfoques ao interessante questionamento. Colocou o despertador sobre a mesinha
de cabeceira, pronto a disparar bem cedinho. Enquanto se movimentava nesses
preparativos, assaltou-lhe ainda uma vez a imaginação. Tentou vislumbrar como
seria fisicamente - talvez de constituição débil, pensou - o tal sujeito que
contestava a perda do dia a dia. Porém, os favos inebriantes do sono já lhe
entorpeciam os estímulos - e ele, um juiz federal, ao olhar os ponteiros do
relógio, sentiu-se também frágil ao ver que se escoara um dia a mais no
processo vital - um juiz tinha o dia a dia como todo mundo. Beijou a esposa já
adormecida e enfiou-se sob os lençóis. Para o novo dia alvitrava um dia a dia
descompromissado. Sim, pela manhã, trataria de ter uma jornada além das
grilagens do dia a dia. Precisava soltar-se. E despencou nos abismos da noite.
(continua)
Do livro "O Clube
dos Feios",
Editora 7 letras, 2ª edição, 2013.
(10 de julho/2014)
CooJornal nº 899
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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