DIA 25
Falava do Barreto. Suas teorias de barro na torrente como
sucede aos economistas. Repito que do ponto de vista semântico tem muito
valor. Axiologicamente são bárbaros. Daqui a mil anos a perspectiva
histórica haverá de reinterpretá-los como hunos de clavas estruturalistas
e lanças monetaristas - com suas inflações galopantes rumo às depressões,
aos estreitamentos dos mercados, enquanto metade da população do mundo se
esfaimava. Os economistas explicam e se flabelam. A mim não enganam. A
civilização passou 2.500 anos dedicando-se ao reflexionismo racional: "...
do movimento ao Ser." De repente, hordas de economistas a pisotear o Ser.
Sob as pastas de Átila, nada. Sob o patalear dos economistas, pior: o Bem
(de produção). O Ser morreu, viva o Bem (de produção). Ergam as páteras. E
quanto mais modernos os economistas, mais bárbaros. Em sua visão
escatológica da História, elegeram o Bem como a suprema finalidade do
Homem. O Ser já era - ou hera, se me permite o trocadilho.
Cite-me
"Gi', um grande economista, essencialmente economista, um clássico, por
exemplo. Não há. Todos que influíram nessa área eram pensadores,
sociólogos, filósofos - Saint-Simon, Proudhon, Ricardo, Adam Smith,
Schumpeter, Marx e o próprio Keynes que além de barão, acima de tudo era
jornalista. No fundo, no fundo, as denúncias jornalísticas de Keynes foram
codificadas com espírito cientifico, só isso. Jornalismo autêntico. Keynes
tinha visão jornalística. Via além de. Daí haver assombrado o mundo. Vê
só, nenhum desses que citei era economista. Os economistas são
presunçosos. Querem mudar o mundo a partir de suas calculadoras e
pranchetas - pior ainda, querem mudar o mundo com explicações, palavreados
e lengalenga.
Voltando ao Barreto. Aquela tua briga
pseudofilosófica com ele foi horrorosa. É. A última. Pra ele "o amor do
homem era o sol, e o da mulher a lua. O sol, ativo, produzia; a lua,
passiva, consumia". Como todo economista, estava tramado na produção e no
consumo. Aí tu argumentaste que "a lua além de produzir, reproduzia -
beleza, inspiração, encanto, subjetivismo, e ainda influenciava nas
enxaquecas dele, em suas marés existenciais e nos ciclos menstruais de sua
gorda ovulação econômica..." Foste mordaz. Abocanhante. Terrível. Ele
despencou da "curva de Gauss" e o simpático não aguentou a noradrenalina
acima da demanda. A enzima PNMT ( não confundir com sigla de partido
político) não deu conta de transformar a nora em adrenalina. Depois, a
sogra entrou em cena. Mais adiante, louças quebradas e objetos voadores
não identificados. Nahoradrenalina - esse neologismo é digno de Proust -
ninguém se contém. A seguir, o processo natural - a casa da mãe, Dona
Enzima, desquite, certidão na mão e incertidão (essa palavra não existe),
digo incerteza, nos passos. Sem haver engendrado nenhum semovente, a
readaptação foi fácil. Ainda mais que um mês depois do desquite apareceu o
Sérvio Túlio - esqueci-me de virgular o tempo dessa frase. Acabaram as
linhas. Até dia 27. "Di"
D1A 26
Hoje, vinha resumir o
dia 24 da página do dia 25, mas encontrei-a também preenchida. A mesma
pessoa continua a brincadeira. Se isso fosse na Suécia eu chamaria a
Polícia - caso de violação da intimidade. Como pode alguém entrar no meu
apartamento e escrever no meu diário impunemente? E dizer coisas que não
me interessam, ou, por outro lado, comentários particularíssimos do meu
Eu? Se fosse na Inglaterra eu chamaria a polícia. Sendo legitima
jornalista não vou perder a classe. A propósito, vou dar uma lição a esse
quem quer que seja. Demonstrarei o meu poder de síntese. Bem, volto ao dia
24: despertador musical, suco de laranja concentrado, ducha morna, toalha
felpuda, secador de cabelos, 15 minutos de ioga, 16 minutos de meditação,
produção de beleza com cremes variados, balança, duas torradas, uma xícara
de café solúvel multinacional (suíço), duas colheres de mel de abelha - de
flor de eucalipto - jeans generalizados, lado A do Rimsky-Korsakov, bolsa
e relógio iguais aos de sempre (comprei uma dúzia de cada, acho que restam
quatro ou cinco): os demais contrariaram Proudhon ("a propriedade é um
roubo") em esquinas de Copacabana, Ipanema, Tijuca. Tomei: o elevador e
dois sustos quando o porteiro do prédio me entregou a quota do condomínio
e o extrato mensal do cartão de crédito multinacional (americano) e um
táxi rumo ao jornal. Trabalhei normalmente, revisei dois editoriais
econômicos, escrevi um artigo político, almocei sanduíches naturais e,
para encerrar o dia, saí com o pessoal vermelho da redação: chope no bar
Amarelinho Assaltou-me (não, esse caso não foi à mão armada) a ideia de
que havia deixado o aparelho de som ligado. Deixei o pessoal e went home!
O som estava realmente ligado. Só que o lado B do Rimsky-Korsakov estava
na vez. Tinha certeza de que havia ouvido só o lado A. Seria mais uma
brincadeira do misterioso invasor do Diário? Se fosse na França, eu
chamaria a polícia. Bem, passei o dia 25 todo fora, gravando um programa
para a televisão. Um documentário sobre os mil cientistas brasileiros
residentes no país. É toda a nossa ciência: mil. Se fosse nos Estados
Unidos chamariam a polícia. Convidaram-me para entrevistar uns
pesquisadores universitários. Assunto: interessante. As reivindicações:
estarrecedoras. Se fosse no Canadá, chamariam a polícia. Cheguei cansada.
Todo o dia trabalhando exaustivamente Uma furgoneta da estação de TV me
deu uma carona. Fomos assaltados numa parada obrigatória Sinal de
trânsito. Rua Jardim Botânico. Levaram-me o relógio e a bolsa de costume -
ainda bem que comprei uma dúzia de cada. Se fosse na Holanda chamaríamos a
polícia. Tomei um chá multinacional (Head-Office inglesa) e adormeci morna
e instantaneamente. Hoje, dia 26, dormi o dia inteiro. São 8 horas da
noite. Vou dar uma volta por aí. "Gi"
(continua)
(Em O
CLUBE DOS FEIOS & outras histórias extraordinárias-
2ª edição - Editora
7 Letras)
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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro28@gmail.com
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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