25/02/014
CooJornal nº 881
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO
|
DIA 23 Não gostei daquele assunto do horóscopo. Não foi sério.
Afinal, nos dias de hoje, horóscopo é uma das poucas coisas em que as
pessoas ainda podem acreditar. Do contrário, o de sempre, promessas das
autoridades sobre início e fim respectivamente dos e das: espiral
inflacionária, correção monetária, desajustes salariais, justiça social,
reforma agrária, corrupção, dívida externa, violência urbana etc. n
Usei o etc. elevado a "n" pra ser compatível com nossa (?) economia. Pois
bem, todos esses problemas são irreplegíveis. Confere no Dicionário do
Aurélio - vem do Latim, era termo usado pelo Padre Antonio Vieira. Adoro
os clássicos. Usavam o idioma com precisão matemática. Com um só termo
equacionavam o Infinito. Agora, vive-se de verborreia bumerangueana
coadjuvada por numerologia surrealista daqui e gravuras quase Dalí. Mas ia
dizendo: horóscopo ainda é assunto mais ou menos sério neste país, sem
nenhuma paráfrase Degaulleana, cabendo, talvez, no máximo, Pascal: "só
acredito em histórias cujas testemunhas tenham sido degoladas". Como a
impunidade é conivente com a nossa história, todos tendem a uma espécie de
diaforismo nacional (descrença em alcançar a Vergonha, a Honestidade).
Não! Isso é do Rui Barbosa - ... alcançar a Verdade, mas é melhor conferir
no Dicionário do Aurélio.
Voltando ao horóscopo. Ouvi de um
legítimo brazilianist: "estou preparando uma tese sobre os efeitos
do horóscopo e das manchetes no leitor brasileiro". É o que anda por aí...
Se eu fosse editor de jornal testava mesmo. Go ahead! Tirava as manchetes
tradicionais da primeira página e colocava-as no espaço reservado ao
horóscopo e vice-versa. Só queria ver o horóscopo garrafal na primeira
página: CÂNCER SOB INFLUÊNCIA SOLAR. E, na quarta página do caderno de
amenidades, as notícias sem importância a respeito da penúltima revisão
constitucional ou da desconstituição dos processos dos mutuários contra as
regras habitacionais. Já desabafei. Pronto.
Continuo o assunto
iniciado no dia 21. Entraste pra Faculdade. 0 curso de Jornalismo foi
brilhante. Aluna, formanda, estagiária modelo. Profissional nem tanto.
Culpa tua. Jornalista freelancer é arriscado. Ainda mais viajando por tudo
quanto é lugar. Titicaca, Terra do Fogo, La Habana, Harlem, País Basco,
Creta, Chipre, Suez, Ibiza, Bósforo, Sicilia, Birmânia, Sri Lanka,
Manilla, Timor, Novo México etc. Não poderia dar certo. Como não deu. Teu
primeiro marido não aguentou. Largou-te por telefone. Antes do sistema
"discagem direta à distância" Sem perder a linha. O Arnaldo. Era bom
sujeito apesar de mau diplomata. Depois, o Barreto, economista. Do ponto
de vista literário, adoro economistas. São os mananciais dos idiomas
contemporâneos. Que seria da semântica, dos neologismos sociais sem
economistas? E o Barreto era totalmente economista, ou seja, não conseguia
praticar a teoria. Mas as linhas estão acabando. Volto dia 24. Assinado:
"Di"
DIA 24
Outra vez alguém entrou aqui e escreveu no meu
Diário. A página do dia 23 estava toda preenchida. Se é alguma
brincadeira, estão indo longe demais, além de reconstituírem fatos íntimos
aos quais ninguém tem acesso. Será alguém que me conhece há muito tempo?
Mas quem e por quê? A brincadeira está ficando desagradável. Deixei de
preencher a página do dia 21 e resumi-a na do dia 22. Vou ter que fazer o
mesmo com a do dia 23. Que fiz no dia 23, além dos movimentos autômanos e
fisiológicos? Bem, fui ao jornal, levei minha crônica dominical e duas
matérias avulsas. Aliás, o chefe não gostou da crônica. Disse que eu
andava abusando de filodoxia. Amanhã vou pesquisar o que é. Tenho a
impressão de haver estudado alguma coisa sobre isso no kantismo ou em
outro canto qualquer. Quando saí do jornal, dei uma passada no Cervantes,
aquele bar tradicional da rua Prado Júnior. Dividi a minimesa com um
economista americano naturalizado (desconheço o Direito Penal de lá).
Ajudou na salada russa, mas contrariou-me no presunto à Califórnia. O cara
era meio louco, contou que estava vivendo com duas mulheres sob o mesmo
teto e tato. Tendo olhos azuis, estranhei. Mas ele mesmo confessou: a
situação estava pondo-o demente. Tudo por causa da primeira mulher, a
original. Estéril e queria um filho. Nem de roda, nem de proveta. Que
tivesse ao menos 60% deles. Então sugeriu que ele arranjasse uma parideira
a fim de viverem a três, ou melhor, a quatro. A mulatinha Doroteia topou e
nove meses depois rebentou: trigêmeos - Jefferson, Franklin e Edison.
Embora brasileiro naturalizado, era um americano - e economista. Triplicar
a família em um ano foi overdose: De dois para seis. Aduziu que a
convivência entre as duas mulheres era formidável. Davam-se perfeitamente
bem. O tripé psicossocial OK. Revezavam-se na cama, na televisão e na
cozinha. O negócio complicou quando passaram da convivência à conivência:
ambas desejavam um casalzinho. Foi por isso que entrou no Cervantes
desvairado por um chope. Acabara de largar as duas mulheres no consultório
ao ouvir do médico: MENINAS! Maldito país inflacionário, queixou-se
comigo, depois do oitavo chope. Levou-o a sua alopração. Deixou-me um
cartão. Trabalha numa multinacional (head-office suíça). Bem, deixei
Cervantes e lancei-me pela Rua Barata Ribeiro acima até a esquina da
Siqueira Campos. Começo de noite morno. Nada de interessante. Até chegar a
casa, três ou quatro assaltos, não me lembro exatamente - é tão comum...
Passaram-me pela cabeça as ideias de Proudhon: "a propriedade é um roubo"
E assim, encarei os assaltantes como ingredientes da Miséria da Filosofia
de Marx. Cheguei sem bolsa nem relógio, embora jurasse que havia saído com
ambos. Desfiz a maquilagem e o espelho devolveu-me aquela propriedade
inequívoca e inassaltável. Amanhã vou atualizar o Diário. Assinado: "Gi"
(continua) (Em O
CLUBE DOS FEIOS & outras histórias extraordinárias- 2ª edição - Editora
7 Letras)
_____________________________
Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro28@gmail.com
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
contato@carlostrigueiro.art.br
www.carlostrigueiro.art.br
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|
|