16/09/2022
Ano 25 Número 1.288
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
O tempo voara. E assim as ideias passaram e
revoaram na cabeça da Srta. Milfford.
Mas
entre o campo das ideias e o da ação há um limbo
mágico que num dado momento se desfaz. E isso é
que caracteriza os vencedores, essa capacidade de
materializacão, como se fosse milagre, porém que é
apenas esforço, muito esforço, e que começa pela
vontade impalpável e termina na molecularização
das coisas, na dinâmica dos atos e, finalmente, na
sinfonia dos fatos.
Foi caminhando
decididamente. O passo firme, o porte altivo, a
vontade férrea. Havia nevado na noite anterior. As
calçadas mantinham-se escondidas sob mantos de
neve, deixando evidentes apenas as trilhas
marcadas pelos caminhantes. A manhã, porém, tinha
discreto brilho solar e, de quando em quando,
algum feixe de luz desdobrava a sua silhueta
projetando-lhe a sombra longilínea adiante dos
passos, quase como um espasmo de sua determinação
de ir em frente.
Reconhecia as casas e os
pequenos edifícios. Aqui e acolá um pormenor
estimulava-lhe a memória. Observou algumas
mudanças originadas pela síndrome devastadora da
guerra. Pensou em tanta coisa. Pensou em levar seu
caso à Justiça, a um tribunal de árbitro
internacional, afinal de contas ela - a Srta.
Milfford - tinha sido violentada no que possuía de
mais seu: sua face, sua identidade para o mundo.
Recordou as conversas das enfermeiras que lhe
prestaram assistência quando estava no hospital.
Os litígios entre médicos e pacientes por questões
disso e daquilo. Mas já havia decidido que essa
possibilidade estava superada. E girou por Spring
Street, apertando o passo e a garganta, pois a
emoção das vizinhanças do Clube já especulava
qualquer estimulo hormonal nos obedientes
neurotransmissores. O coração bateu mais forte
quando chegou à esquina de Westbourn Terrace, a
sensação de um espasmo levíssimo ocorreu-lhe sobre
a membrana ocular esquerda. Havia anos não sentia
aquele sinalzinho de excitação nervosa. Tentou
recordar quando acontecera. Não conseguiu. Mas
conseguiu reconstituir a própria fisionomia
extinta. Era como uma recordação longínqua. Nada
tinha a ver com aquela mulher, agora quarentona,
ainda bela e atraente. E o que era ser bela? -
perguntou a si mesma. Tentou descrever-se: as
maçãs do rosto coradas pelo frio, arredondadas com
estilo; a boca enigmática, com lábios finos e
sorriso cativante; o nariz afilado e charmoso,
ligeiramente arrebitado; os grandes olhos azuis
bem guardados por cílios longos e sobrancelhas
ricas, dadas ao redesenho e pouco retoque. A testa
sempre fora alta, anunciando frontes cavadas que
iam se esconder sob vasta cabeleira quase ruiva,
mas absolutamente natural. No centro do queixo
ligeiramente ovalado havia uma imperceptível
fissura circular que se tornava visível nos
sorrisos acentuados. A habilidade do Dr. Miguel de
tal aproveitara a massa bruta forjada pela
natureza, qual um monólito de mármore, e
cinzelara-lhe a face concomitante com os sopros da
vida e a ciografia do bisturi.
Estava agora
exatamente diante da sede do Clube. Olhou em
volta, mas pouco viu. A emoção já lhe tolhia a
perspectiva da observação. Mas decididamente bateu
à porta quatro vezes, como era de praxe entre os
associados, valendo-se de uma mãozinha de bronze
que pendia da portinhola por onde se enxergavam os
visitantes. "Tudo como antigamente" pensou. Alguns
minutos depois, a portinhola se abriu e uma voz
conhecida indagou: "Quem está aí?" Era a abnegada
Sra. Maiden, agora com seus setenta e tantos anos.
A voz agora mais débil, porem inequívoca para a
Srta. Milfford que se anunciou. Alguns momentos
decorreram. Finalmente a porta se abriu e o vulto
da Sra. Maiden movimentou-se logo atrás. A Srta.
Milfford estendeu-lhe a mão recem-nascida das
luvas, mas a velha senhora hesitou em
cumprimentá-la, como se não a reconhecesse, embora
a voz lhe fosse algo familiar. "Sou eu mesma',
disse resoluta a ex-frequentadora. "Deixe-me
entrar, preciso falar com os membros do Conselho,
hoje é quinta-feira e sei que todos estarão
presentes daqui a pouco" A Srta. Milfford não
tirou o chapéu, nem o lenço que lhe protegia o
pescoçoo, de modo que não era muito fácil comparar
a nova fisionomia com a imagem arquivada na
memória ótica da velha senhora, ainda mais que
estava sem os óculos e, seguramente, sua visão
regredira naqueles 11 anos. "Está bem, Srta.
Milfford... parece-me diferente, sente-se aqui
nesse sofazinho mais perto da luz", aquiesceu a
anciã. E acrescentou: "Enquanto isso, vou avisar
ao Sr. McEnroe, agora ele faz parte do Conselho.
Bem, aconteceram muitas coisas nesses anos aqui,
minha filha; você já saberá. E antes que me
pergunte pelo meu Franklyn, antecipo-lhe que já se
foi desta para melhor... e também..., mas, aos
poucos saberá de tudo, volto logo", e desapareceu
pelo corredor, cruzando o vestíbulo principal.
A Srta. Milfford não se sentia confortável,
porém não sabia dizer exatamente como. Sentia
qualquer coisa estranha. Recolheu o sobretudo ao
cabide, sempre solícito, da entrada do Cllube e
pousou o chapéu num de seus ganchos. Sabia tudo o
que ia dizer aos conselheiros. Que se arrependera
de ter deixado o grupo por todos aqueles anos em
busca de uma vã e inexistente felicidade baseada
na beleza estética; e estava disposta a retornar
ao convívio; e que, agora, poderia ser até mais
útil à pequena comunidade ajudando a Sra. Maiden,
já que Franklyn partira para sempre. Sim, poderia
morar na própria sede e cuidar da arrumação, da
limpeza, organizar os suprimentos, encarregar-se
da contabilidade e demais tarefas administrativas.
Estava certa de que convenceria aos membros do
Conselho. E somente naquele momento foi capaz de
entender o conflito alimentado entre seu interior
e a aparência exterior. Ocorreu-lhe que um dos
dois havia evoluído e o outro continuava na
imperfeição.
Mantinha o pensamento nesses
caminhos, quando pelo corredor reapareceram o
vulto e a voz da Sra. Maiden: "O Sr. McEnroe disse
que você pode subir ao segundo andar, mas
recomendou mirar-se no 'Grande Espelho' antes de
se encaminhar às escadas". De repente, a Srta
Milfford sentiu grande alivio. Fitou mentalmente o
espaço que a separava do "Grande Espelho",
ergueu-se resoluta e entrou no vestíbulo. Estava
agora bem à frente de sua imagem refletida, não
parecia alegre nem triste; tinha o semblante
amadurecido. Virou-se rumo ao corredor que levava
às escadas, quando sentiu dor lancinante na face,
como se os músculos se repuxassem todos de uma
vez: as pálpebras, o nariz, os lábios, a ponta do
queixo, a fronte, mesmo o pescoço e as orelhas.
Sentiu um rubor nas faces tal como se estivesse
sendo esbofeteada - qual na infância e
adolescência, por seus algozes familiares. Mas
continuou caminhando, subiu os degraus
pausadamente, ritualmente. Percebeu que a figura
da Sra. Maiden desaparecera outra vez lá em baixo.
Atingiu o patamar, girou ligeiramente à direita e
viu a saleta onde se reuniam os conselheiros. A
porta estava semiaberta, conseguiu ver quatro
cadeiras vazias de frente para a escrivaninha do
presidente do Conselho. Atrás da escrivaninha, lá
estava o Sr. McEnroe, que se alçou do assento com
uma mesura cavalheiresca, deixando escapar
vivamente: "Cara Srta. Milfford, que enorme
satisfação tê-la de volta ao nosso convívio!" E
estendendo a mão, arrematou visivelmente
emocionado: "Você não mudou absolutamente nada,
apesar dos anos ainda parece aquela mesma
assustada senhorita que vi no trem pela primeira
vez".
Ao impacto emocional a Srta. Milfford
não pôde responder de viva voz, porém duas
lágrimas abundantes rolaram-lhe face abaixo e
teriam despencado no velho tapete turco, não fosse
o lenço do Sr. McEnroe interceptar-lhes a queda.
Agora, começara a sentir-se ligeiramente corcunda,
tinha a sensaçao de que os ombros se envergavam
para dentro, como antigamente. Por fim, disse:
"Mirei-me no 'Grande Espelho' e..." "Não se
preocupe", atalhou o conselheiro, "O 'Grande
Espelho' continua fazendo a mesma coisa de sempre:
só corrige as imperfeições".
Em O CLUBE DOS FEIOS & outras histórias
extraordinárias - 2ª edição - Editora 7 Letras)
(RT, 15 de dezembro/2013) CooJornal nº 870"
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|
|