16/08/2022
Ano 25 Número 1.284
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
"A primeira providência que tomei no sentido
de regularizar a vida cotidiana foi escrever ao
Clube pedindo minha exclusão, alegando retorno à
Escócia. Mas continuaria a contribuir. Não foi uma
atitude fácil. Remoeu-me milhares de vezes nos
escaninhos da mente. E esgrimi prós e contras. Mas
quando postei a carta, retirei de dentro de mim
enorme sofreguidão. Dirigi a missiva à Sra. Maiden
para que comunicasse aquela decisão ao Conselho do
Clube. Sim, o tempo passa e o pensamento voa.
"Ah! O Clube" pensava. "Naqueles últimos dez
anos - caramba! - dez anos de convivência com
aquelas pessoas fora do comum, fugidas do tempo,
do espaço, de si mesmas, de tudo... Eu tinha 25
anos quando pelas mãos do Sr. McEnroe associei-me
ao Clube. Minha feiura obrigava-me a trabalhar em
horário noturno, como espécie de vigia num galpão
perto do Tâmisa. Eu viera dos arredores de
Kirkintilloch, a nordeste de Glasgow, das frias
colinas escocesas, tentando achar um futuro onde
ninguém me conhecesse ou reprovasse. Meus próprios
familiares induziram-me a sair de casa, pois minha
feiura perturbava e manchava-lhes a reputação. Nos
lugarejos pequenos todo mundo se conhece. Todo
mundo sabe onde se mora, que apelido tem, com quem
namora, de que signo zodiacal provém, ou quantas
vezes se vai à igreja, e se peca e com quem peca,
e tudo o mais que interessa à maledicência
provinciana. Quanto menor a província, maior a
murmuração; acho que é isso mesmo. Ter nascido ali
já deveria ser por algum pecado original. E
permanecer ali era penitenciar-se. Por isso quando
me enxotaram de casa, com desculpas e ardis, até
achei bom. Londres era uma outra dimensão. Enorme
e anônima. Eu teria algum futuro ali. Era assim
que eu pensava. Mas foi tudo muito difícil. Achar
moradia, conseguir emprego, legalizar documentos.
Minha feiura sempre comprometia as melhores
intenções. Pensei em prostituir-me. Até procurei
uma cafetina. Mas a velhaca riu-me na cara e disse
que com aquela feiura morreria virgem. Pior: tinha
razão. Amor e sexo, eu só conhecia de livros
surrupiados. Aprendera a masturbar-me para sufocar
as investidas da natureza e era tudo o que havia
aprendido de sexo. Nenhum homem jamais havia me
olhado como mulher. Olhavam-me como um traste, uma
penúria, um fenômeno. Às vezes até rezava para
encontrar um tarado que me possuísse. Mas era uma
coisa muito indecorosa. E eu afastava aqueles maus
pensamentos. Até o dia em que encontrei o Sr.
McEnroe no trem noturno. Fazia frio e eu tentava
esconder fraqueza e feiura dentro do abrigo e
debaixo do xale. Mas ele, que era um sujeito
experiente, principalmente nas lides do aspecto
físico disforme, logo percebeu que eu me escondia
mais do que me abrigava. Estendeu-me a mão,
mostrou-me sua face mutilada com um ar de antiga
cumplicidade e poucos dias depois lá estava eu
sendo apresentada ao Conselho do Clube. E foi no
Clube que renasci. Reaprendi a viver. Constatei
que a coesão de ideais tem muito maior força do
que se imagina. E conheci a magia do 'Grande
Espelho'. Era realmente fantástico que diariamente
quando chegávamos ao Clube e passávamos, um a um,
em frente ao 'Grande Espelho, tivéssemos a
fisionomia instantaneamente modificada, ou melhor,
corrigida, de modo que o convívio era realizado
nos padrões estéticos que deveríamos ter original
ou teoricamente, conforme o infortúnio de cada
qual. E, após o convívio, quando nos retirávamos,
a passagem obrigatória pelo vestíbulo onde ficava
o 'Grande Espelho' nos devolvia a fisionomia
natural do dia a dia; era como se despertássemos
sempre do mesmo sonho. Mas não podíamos nos fixar
na imagem mais do que oito segundos.
"Embora os estatutos do Clube proibissem qualquer
tipo de relacionamento entre os agremiados fora da
sede, foi pelas mãos do Sr. McEnroe que conheci os
prazeres da carne. Unimos nossos corpos. Trocamos
beijos como se encapuzados - como os amantes
concebidos pelo surrealismo de Magritte. Mas não
houve amor entre nós. Não havia campo estético
para o amor brotar. Houve gentileza - talvez um
eufemismo de fraqueza. Fiz mais por uma questão de
gratidão. Fiz. Não me entreguei. Fiz porque também
queria me sentir como todo mundo. O mundo que me
negava quase tudo começara a soltar migalhas de
beleza através da feiura de uma sofredora como eu.
Continuamos amigos e víamo-nos sempre nas
conversas vespertinas do Clube, ou em algum
torneio de bridge. Vez por outra tomávamos chá no
mesmo grupo. E em alguma quinta-feira, durante as
cerimônias de meditação, trocamos vibrações de
mútua gratidão.
"Qualquer um de nós se
sentia inteiramente à vontade no Clube. Todos
tinham plena consciência do que estavam fazendo
ali. Ninguém se iludia com a vida lá fora. Não
havia promessas do lado de lá. Além do Clube não
se vivia. Purgávamos. Muitos de nós desaprendiam a
sorrir além do Clube. Os músculos do sorriso, que
são tão elásticos, atrofiavam. Lembro-me de que a
primeira vez que sorri, depois de anos, minha face
doeu. Porém, como era minha alma sorrindo, os
músculos tiveram de obedecer e foram se
reacostumando. Mas só funcionavam nas dependências
do Clube.
O tempo continuava a passar e o
pensamento a voar: reaprender a viver sem nunca
ter realmente vivido foi uma árdua experiência. A
começar pela minha voz. Nunca tinha pensado nisso.
Mudei de rosto, era outra pessoa, mas minha voz
ficara como uma espécie de impressão digital. Foi
por isso que tive de mudar de endereço. Era
constrangedor - para quem não acreditava, nem
poderia - estar explicando ao carteiro, às poucas
pessoas da vizinhança, que sofrera um acidente,
mas estava viva. Sentia que lhes parecia um
fantasma. A rigor, era outra mulher falando com a
minha voz.
"Reaprender a ter postura
corporal digna de pessoa normal também foi muito
complicado. Observei que durante toda a vida, além
de tentar esconder minha feiura, baixando o rosto,
cobrindo-o de disfarces - ora o cabelo comprido,
ora um lenço, ou o que coubesse melhor segundo as
estações do ano -, havia curvado a coluna de modo
convergente, sem perceber, acorcundando-me. Os
ombros também se curvaram para dentro todos
aqueles anos, de modo que, tudo somado, havia
diminuído minha estatura.
"Sempre tive
vontade forte. Recuperei postura e estatura.
Arranjei trabalho novo. Tornei-me vendedora em uma
loja de vestuário feminino na Oxford Street. Com
minha boa aparência, não foi difícil. Não que o
trabalho de vender me encantasse. Atraía-me, sim,
a condição de poder falar com as pessoas,
dizer-lhes coisas amáveis e ser cumprimentada com
delicadeza, com fino trato. Comprazia-me estar
perto das pessoas, olhando-as de perto e sendo
olhada - às vezes até admirada por algum
sorrateiro olhar masculino que escapulia da
vigilância da mulher. E a loja tinha espelhos
enormes onde podia de vez em quando refletir minha
silhueta esguia. No começo, estranhei um pouco
dirigir o olhar para espelhos grandes. O único a
que me acostumara tinha sido o 'Grande Espelho' do
Clube. Mas aquele era um espelho especial; todos
no Clube sabiam de sua origem egípcia e de suas
propriedades mágicas: corrigir imperfeições.
"Foi por um daqueles espelhos da loja que
conheci o amor. Surpreendi-me sendo admirada por
um cavalheiro que me seguia através dos reflexos
da imagem de vários espelhos no interior da loja
até chegar aos espelhos da vitrina. Entrou,
comprou um lenço de seda e desfiou uma conversa
que se estendeu por mesas de restaurantes, jardins
do Hyde Park, e se enredou em meus lençóis. Foi
belo enquanto durou. De início, os carinhos
entranhados em cada gesto ou olhar. Cada entrelace
de mão, cada abraço, beijo ou afago
redimensionavam o começo da vida a partir dali. E
a vida estava sempre recomeçando, não havia meio
nem fim - o amor é assim mesmo, é essência de
começos, é concentração de inícios, tem centelhas,
é explosão. Mas, quando a vulgaridade do cotidiano
fez-se inevitavelmente presente, surgiram as
desavenças, os ciúmes, as intermináveis querelas
da desconfiança, os remoinhos das suposições
infundadas, o sentimento da posse absurda, enfim,
os ingredientes mesquinhos que a maioria carrega
dentro de si por insegurança, por incapacidade de
vislumbres mais altos, por impotência de manter o
amor sempre na atmosfera emocional do inicio. E aí
surge a rotina maçante do dia a dia: o amor começa
a sofrer interferências fora da estesia e tende a
desconcentrar-se num movimento contrário a sua
lógica. Amor entre homem e mulher não evolui. Se
evoluir deixa de ser amor. Desloca-se do desejo
para o interesse. Nenhum interesse pode explodir
como o desejo amoroso. E por isso o cavalheiro
inverteu a trajetória: primeiro saiu de meus
lençóis, depois das mesas de restaurante, dos
jardins do Hyde Park e, por fim, desviou-se da
calçada da Oxford Street e dos reflexos dos
espelhos da vitrina. De meu coração já havia
desertado. Ele demorou a reconhecer a involução de
nosso relacionamento. Mas demonstrei-lhe com a
precisão que o caso exigiu. E foi tudo.
(continua)
(Em O CLUBE DOS FEIOS & outras
histórias extraordinárias-2ª edição - Editora 7
Letras)
RT, 22 de novembro/2013 CooJornal
nº 807.
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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