16/07/2022
Ano 25 Número 1.280
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
E era assim que os ingressados do Clube iam
revirando a ampulheta da existência. Os tempos ali
vividos lhes redimiam o destino. O Clube era quase
tudo, ou para alguns tudo. As seções esotéricas
quinzenais, geralmente às quintas-feiras quando se
reuniam exclusivamente para se sintonizarem com as
forças cósmicas, mediante concentração e meditação
conjunta - sempre potencializadas pelas imagens
refletidas no "Grande Espelho", que nessas noites
era deslocado para salão principal - representavam
momentos de raro fulgor espiritual. Em tais
ocasiões, a chama das velas substituía os
filamentos de tungstênio da iluminação moderna,
vertendo sua luz mística sobre o ambiente e
proporcionando a benignidade do mistério e da
magia àquelas almas ali reunidas e que haviam
reencontrado a si mesmas.
A história do
Clube e do comportamento dos associados deveriam
ser irretocáveis até o dia de hoje, mais ou menos
nos padrões acima descritos, não fosse o acaso
bater afortunadamente à porta da vaidade humana.
Tudo começou quando uma das frequentadoras - a
Srta. Milfford - foi atropelada ali por perto da
estação do metrô de Marble Arch. O acidente fora
sério e a feia solteirona só não perdeu a vida
porque o causador lhe prestou socorros imediatos.
Transportada ao hospital público, submeteram-na a
cirurgias e tratamentos que a gravidade do caso
exigia. Ficou alguns dias em coma, algumas semanas
em estado de choque e outras tantas em
perplexidade. Podia-se resumir que os ossos
fraturados foram corretamente rejuntados, os
cortes na epiderme devidamente sarados e os
membros inferiores e superiores - afetados pelo
impacto que sofrera na região craniana - tiveram
milagrosa reabilitação. A única dúvida sobre a
recuperação total da paciente Milfford residia em
seu rosto ainda enfaixado e submetido a várias
intervenções cirúrgicas. Médicos e paciente
questionavam-se sobre aquilo. Aliás, em seus
primeiros momentos de lucidez, após o período
comatoso, a Srta. Milfford lembrava-se de haver
ouvido vozes na enfermaria, um pouco vagas é
verdade, mas achava que teriam sido nos seguintes
termos: "ela vai ficar completamente diferente,
irreconhecível mesmo para ela" ou assim: "tivemos
de fazer vários enxertos, recomposições e
realinhamentos de camadas de tecidos, desvios de
nervuras etc." ou fraseado do gênero: "ela talvez
precise de algum tempo para acostumar-se com o
novo rosto, e... talvez até goste, porque tivemos
que eliminar algumas anomalias membranosas da boca
e do nariz, refazer a linha das pálpebras,
redesenhar os pômulos, depurar antigas marcas de
acne perniciosa, alem de redefinir os lóbulos das
orelhas". Mas o que havia intrigado mesmo a
paciente foi uma voz feminina, provavelmente de
alguma enfermeira, que cochichou qualquer coisa
como: "essa moça vai precisar mudar de vida,
porque tenho feito seus curativos e observei que,
apesar de ter agora alguns anos a mais de idade, a
fotografia de sua carteira de identidade não
corresponde nem de longe à pessoa debaixo dessas
ataduras"
Dois meses de leito no hospital
foram insuportáveis para a Srta. Milfford. Porém,
as semanas que se seguiram não tinham comparação
com nenhuma outra fase de sua vida. Desde o dia em
que lhe mostraram sua nova face, seu coração
parecia escapulir-lhe desabaladamente. E tinham
razão, a dona e o coração. Acostumada à feiura
generalizada da antiga fisionomia, de repente,
como por milagre, ganhara um rosto interessante,
quase belo, ou mesmo belo, com certa dose de traço
artístico. No hospital ficara sabendo da grande
evolução na medicina corretiva durante os últimos
anos. É verdade que também ficara sabendo de
alguns episódios complicados entre médicos e
pacientes nessas chamadas cirurgias corretivas. Às
vezes, pacientes ficavam insatisfeitos com o
trabalho dos médicos e recorriam à Justiça pedindo
indenizações pecuniárias ou de outra natureza.
Também, certas vezes, médicos acionavam pacientes
que distorciam o resultado de seus trabalhos. E
todas essas questões haviam atingido tais
proporções que obrigavam as partes intervenientes
a apresentarem e assinarem documentos prévios às
intervenções cirúrgicas. Assim, se algum olho
ficasse mais amendoado do que o solicitasse o
paciente, ou surgisse um repuxo labial,
proporcionando sorriso permanente nalgum
mal-humorado sujeito, os deslizes já estavam
previstos pelos doutores da lei.
No caso da
Srta. Milfford, quisera o destino que, na noite do
acidente, estivesse de plantão na cirurgia de
emergência do hospital um internista vindo da
Itália, precisamente das colinas toscanas.
Chamava-se Miguel de tal. Sabia tanto de medicina
quanto de artes plásticas. Nos intervalos das
aulas, era o que diziam, ruborizava os colegas
ingleses com seus traços maliciosos na folha de
papel, mostrando a lápis o que faria com o bisturi
para aprimorar este ou aquele nariz de algum
membro da família real. Esculpia, caso se pudesse
dizer isso, com miolos de pão, a fisionomia de
personalidades do mundo britânico ou de dirigentes
do hospital. Enfim, era cirurgião e artista.
Quando o rosto meio esmigalhado da Srta. Milfford
apareceu-lhe naquela noite, estava mais inspirado
do que nunca. E a inspiração prosseguiu nas
cirurgias seguintes, porque o caso da Srta.
Milfford era invulgar. O medico trazia na mente
todos os esboços estudados e reestudados do que
pretendia criar como artista pelas mãos da
medicina, no rosto da acidentada. Mas o que
pretendia fazer, fizera mesmo. Nem cirurgião, nem
paciente poderiam imaginar a guinada do destino
nos caminhos até então sombrios da sobrevivente.
Testemunhas contaram que na manhã em que a Srta.
Milfford teve o rosto descoberto totalmente e
entregaram-lhe um espelho, houve um momento de
irreprimível emoção, mesmo por parte dos
profissionais de branco, passantes fingidos e
conhecedores do caso apenas no transpirado da
ética médica para a esfera da vulgaridade humana.
Lógico que havia muito mais pessoas do que as
normalmente necessárias no dia a dia da
enfermaria, porém, a curiosidade, a maledicência e
a inveja são companheiras inseparáveis dos
inconformados com a própria sorte, às vezes nem
sempre tão má. Daí a natureza humana, por ser como
é, ter garantido na espiral dos tempos a má
formação dos ladrados, cochicheios e mexericos.
Mas vejamos a Srta. Milfford. Obviamente que
ficou procurando no espelho sua antiga imagem.
Rebuscando seria exatamente a expressão, porque
como não se encontrou refletida na forma que os
sentidos lhe habituaram, chegou a conferir o fundo
do espelho, girando o cabo ligeiramente primeiro
para um lado, depois para o outro. Por fim,
deteve-se na imagem vista. Uma bela mulher estava
em seus olhos, no fundo dos olhos: pendeu a face
esquerda levemente para não quebrar tal encanto e
foi constatando, centímetro por centímetro,
tratar-se dela mesma. Era incrível. Olhar para si
mesma e ver-se outra pessoa. E loucura, loucura
maravilhosa: tinha se tornado bela, lindíssima.
Apalpou a ponta do queixo, deslizou os dedos pelo
pescoço. Talvez sonhasse. E corou. A imagem
espelhada corou também. E descorou. E sua imagem
imitou-a. Olhou em volta e viu os homens de branco
sérios, mas contentes. Reparou que Dr. Miguel de
tal recebera dois ou três discretos apertos de
mão. Lembrou que embora as regras do Clube
proibissem o uso de espelhos em bolsas, trazia o
seu escondido - como é próprio da vaidade feminina
-, um espelhinho redondo, distribuído a titulo de
propaganda por uma mercearia do bairro. Pediu para
lhe entregarem a sua bolsa. Prontamente a
enfermeira lhe passou uma sacola de couro de cor
sépia onde num falso fundo estava lá o tal
espelhinho. A Srta. Milfford corou de novo, mas
continuou sua investida rumo à prova final.
Segurou o espelhinho como se o mesmo pudesse
voar-lhe das mãos, tão excitada estava. E trouxe-o
de frente e de perto até que sua imagem preencheu
a superfície do objeto. Chegou quase a sorrir, e o
espelhinho mostrou seu quase sorriso. Contraiu as
sobrancelhas e o espelhinho obedeceu. Arregalou os
olhos e foi assim que se deu conta de que era ela
realmente quem estava ali. Não sonhava, nem
delirava. Ao contrário, um pesadelo havia
terminado - o pesadelo que havia sido toda sua
vida de feiura. Aquela cena permaneceria para
sempre em sua mente. Descobriu que renascera
fisionomicamente; que a atormentada, lúgubre e
horrorosa Srta. Milfford desaparecera como por
encanto em meio a um punhado de faixas, ataduras,
bandagens, esparadrapos, tufos de algodão, e
pomadas e cremes espremidos. Foi quando começou a
perpassar-lhe o horizonte de uma nova existência a
advir. E ela, a própria Srta. Milfford,
escorraçada do mundo, da vida normal, dos grupos
mundanos, seria a protagonista de uma vida
diferente, construída sobre alicerces de... por
que não dizer?... Da beleza... sim, pela primeira
vez na vida, o senso da beleza trazia-lhe o alento
da felicidade.
No dia da alta no Hospital,
a Srta. Milfford despediu-se dos atendentes e
enfermeiros com um ar nostálgico. Aos cirurgiões
desejou-lhes inspiração divina. E quando o Dr.
Miguel de tal beijou-lhe a mão, duas lagrimas
fluíram-lhe frouxas e densas, rolando paralelas
face abaixo até que um lencinho amarrotado
sorveu-lhas em ato duplo. Trajava roupas doadas ao
Hospital, porque as vestidas no dia do acidente
ficaram imprestáveis. A primavera incipiente
obrigava ainda ao uso do sobretudo, de modo que ao
cruzar a porta do nosocômio, cabeça encapuzada,
corpo ligeiramente encurvado pelo hábito de tentar
esconder a feiura, a aparência do vulto nem de
longe se coadunava com o turbilhão de pensamentos
que se sucediam naquela mente exercitando a
audácia de quem busca o novo e a ansiedade inútil
dos que tentam recuperar o tempo.
(continua)
(Em O CLUBE DOS FEIOS & outras
histórias extraordinárias-2ª edição - Editora 7
Letras)
(22 de novembro/2013) CooJornal
nº 8ó7.
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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