01/07/2022
Ano 25 Número 1.278
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Foi esse incidente o primeiro e único a expor
o secretismo do grupo à revelação. Em compensação,
serviu para recomendar aos agremiados não mais
comparecerem juntos a qualquer solenidade pública
que comprometesse a integridade do Clube. Nem por
motivo de vida, nem por motivo de morte. E o
Conselho do Clube deliberou que aos funerais de
seus membros - quando isso ocorresse -
compareceria apenas um representante especialmente
designado. Daí em diante assim procederam. De
fato, havia coerência quanto ao hermetismo do
Clube, ao menos quanto a sua preservação, como foi
ficando cada vez mais evidente ao longo do tempo.
Em geral, eram feios por determinação
genética, provavelmente alguma incompatibilidade
cromossômica nos labirintos da perpetuação.
Obviamente, se a Natureza não é perfeita, podia-se
admitir que cochilara no encompridamento de algum
nariz, na zarolhice de um sujeito já com orelhas
de lóbulo abundante, ou na oclusão de dentes em
bocas de riso cruel. Havia casos provenientes de
malfadada moléstia ou de terríveis acidentes que
deformavam para sempre, principalmente quando
envolviam queimaduras por ácido, fogo e
infelicidades do gênero. Descuidos de parto também
havia. E possivelmente partos por descuido. Em
suma, nenhum sócio do Clube era feio por
espontânea vontade. E isso constituía elemento de
coesão entre os membros do estranho grupo.
Até encontrarem o Clube, tinham vida atormentada.
Reconhecidos imediatamente no ambiente de
trabalho, nos mercados públicos, nas lojas de
comércio, nos transportes coletivos, nos centros
de diversão, nos estádios de futebol ou templos
religiosos, sofriam discriminação de todo tipo. E
não há discriminação mais vil do que a da
estética. Porque esta não está prevista nos
códigos de proteção democráticos - como os casos
de raça, cor da pele, sexo, idade etc. A crueldade
do mundo excluiu os feios de tudo quanto é código
protetor. Assim, a discriminação que afeta os
infelizes conta com a complacência das leis e a
indiferença dos documentos reguladores. No caso
dos feios do Clube não tinha sido diferente.
Ganhavam apelidos e chacotas. Recebiam muxoxos e
expressões de asco daqui e dali. Dependendo da
sorte sofriam desde a infância ou desde a
adolescência. Alguns desde sempre.
Depois
que ingressavam no Clube, sempre trazidos pelas
mãos de um membro compadecido e, sabe-se lá, com a
interferência casual da Providência,
transformavam-se em outras pessoas. Despojavam-se
de ressentimentos, angústias e complexos.
Começavam por enxergar o mundo sob outros
espectros e terminavam invariavelmente filosofando
sobre suas feiuras, até que outra dimensão do
conhecimento acabava por lhes proporcionar aquela
visão interior e, ao mesmo tempo, cósmica, própria
dos espíritos avançados. Ou seja, passavam por um
renascimento. Coisa que raramente ocorre aos
indivíduos agraciados com a normalidade da
existência - aos que levam a vida material e
subjetiva sem altos e baixos.
Mas o
renascimento não ocorria do dia para a noite. Era
necessário o tempo ceifar o próprio tempo. No
começo, o julgamento dos conceitos estéticos do
homem sobre a própria espécie era muito debatido
pelos iniciados do Clube. Alvo de discussão, por
exemplo, a condição bípede do ser humano e a
coroação da cabeça como o centro da esteticidade.
De fato, ninguém era feio pelas mãos, pelos pés,
pelo pescoço, pelos ombros, pelo ventre e mesmo
pelas costas. Davam-se conta, curiosamente, ser na
região onde se concentram os sentidos nobres do
ser humano que se estabelece uma espécie de
consenso conceitual da beleza. Somente com a
compreensão dessas limitações mesquinhas dos
sentidos naturais é que os novos membros do Clube
reestruturavam sua condição emocional diante da
vida e do mundo e, daí em diante, passavam a
enxergar a beleza provinda de dentro de si mesmos
como um dom infinitamente superior ao da estética
concebida e aceita pelo homem mundano.
O
primeiro impacto na vida de um novo membro do
Clube consistia no esforço para desapegar-se do
excesso de roupas, de disfarces, de boinas, de
chapéus, de golas altas, de echarpes, de bengalas,
de sombrinhas e, de repente, facear as pessoas com
as cabeças descobertas, pois era assim que se
procedia nas dependências do Clube. Todos deviam
encarar-se com olhos nos olhos. De fato, o receio
de serem vistos como feios que eram, anos a fio,
lhes condicionara o comportamento de tal modo que
demoravam a se encorajar para uma troca de olhares
sem o mínimo de dissimulação. Tal franqueza
somente era vencida após algumas semanas de
convívio. Dois ou três casos tinham sido mais
renitentes, e uma senhora de origem chinesa - era
o que se sabia -, levara anos para livrar-se da
vergonha de seu notável estrabismo. Dificuldade
maior era libertarem-se dos recalques, dos
complexos, dos vícios elaborados e reelaborados
nos torvelinhos da mente, na alquimia das lágrimas
secretas, pesadelos noturnos, nos medos ruminados.
Ambientados à solidão e resignados à
excentricidade, tornavam-se pessoas de trato
difícil e requeriam período de readaptação ao
convívio social. Porém, o sofrimento de suas vidas
anômalas não gerava somente crises de autoestima
ou outras deformações no processo afetivo. Alguns
se refugiavam nos livros, outros no fumo, no
álcool, também na religião e ainda na música,
pintura e na escultura. Não raro algum narigão
servia de pincel durante crises depressivas ou
viagens etílicas, bem como algum orelhão
extrapolara sua funcionalidade acústica ao servir
à execução de uma sonata para piano pelo
tamborilar de dedos em seu dorso.
Porém, a
vida no Clube tornava tudo diferente. Vícios
cessavam ou diminuíam; manias e esquisitices
regrediam; o solitarismo do dia a dia deixava de
ser uma fuga e passava a ser incentivo aos
encontros na sede. E ali jogavam cartas, xadrez,
damas, bilhar. E conversavam. Organizavam torneios
de bridge, gamão, sinuca. E discutiam. Tomavam
algum uísque ou cervejavam. E desvelavam-se.
Bebiam chá e depuravam-se. Trocavam ideias,
pilheriavam. Ninguém se lamentava. Fumavam
cachimbos, charutos, cigarrilhas, cigarros,
dependendo da hora e da vez. Ninguém se
incomodava. Falavam e viviam. Reconvertiam-se à
vida. E reviviam. Olhavam-se no "Grande Espelho',
despediam-se e iam embora felizes.
(continua)
(Em O CLUBE DOS FEIOS & outras histórias
extraordinárias- 2ª edição - Editora 7 Letras)
(15 de novembro/2013) CooJornal nº 8ó6.
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|
|