16/06/2022
Ano 25 Número 1.276
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Em Londres, sempre houve clubes
de todo tipo. O Clube dos Feios não constava dos
catálogos telefônicos nem dos peculiares guias de
turismo. No entanto, funcionava há mais de meio
século no mesmo local - uma construção de três ou
quatro andares em Westbourne Terrace. O número me
fugiu há tempos.
Reunia-se ali uma
comunidade de pessoas feias sob a égide de bem
elaborado estatuto, como convinha a uma agremiação
do gênero. Não havia discriminação de raça, cor ou
sexo. Nem de idade, profissão ou rendimentos.
Bastava ser feio e cumprir o regulamento.
Obviamente, muito claras eram as normas quanto aos
objetivos, obrigações pecuniárias, organização e
funcionamento do Clube. Parágrafos explicativos
não constavam das regras, pois não havia clima
para suposições, nem dessintonia para dúvidas.
A sede distribuía-se por corredores e salas
aparentemente entulhados, mas tudo era de tal modo
arrumado que nos espaços certos cabiam os móveis
justos, os sofás apropriados, poltronas a contento
e mesas a gosto. Eram peças de vários estilos e de
épocas descontínuas, subtraídas do patrimônio dos
sócios por vias de contribuição, doação ou
disposição testamentária.
Aqui e ali uma
peça de bronze, porcelana ou cristal a quebrar a
integridade das perspectivas e a inércia dos
ângulos. Tapetes provavelmente orientais de cores
esmaecidas e franjas despenteadas abrandavam os
rangeres do assoalho hostil aos passos dos
frequentadores. Poucos quadros e gravuras
enjanelavam as paredes, enquanto cortinas de
veludo desbotado guarneciam janelas nunca abertas.
Toda iluminação provinha dos braços dos lustres ou
fugia da proteção de abajures discretamente
pousados sobre mesinhas e colunas outrora
decorativas.
Tudo muito sóbrio. Nada ali
sobressaía, a não ser o grande espelho emoldurando
a parede do vestíbulo, junto ao cabide de aspecto
solícito onde os frequentadores repousavam seus
abrigos e chapéus. Aquele espelho exercia função
primacial aos propósitos do Clube. Por isso
guarnecia a entrada e a saída da sede, e era
chamado de "Grande Espelho", com uma certa
reverência, por motivos que veremos adiante.
A arrumação e o asseio do Clube eram
esmerados. Um casal sexagenário cuidava de tudo há
muito tempo. A Sra. Maiden e Franklin
compartilhavam sua feiura num amplo quarto do
segundo andar; aliás, um aposento onde não havia
nada além do estritamente necessário. Nenhum
adorno, nenhum complemento decorativo para
disfarçar a monotonia da funcionalidade. Uma cama
vitoriana de terceira mão, mesinhas de cabeceira
de estilo não catalogado, imenso guarda-roupas do
início do século e cabide de tripé contemporâneo
preenchiam o pequeno mundo do casal.
Luxo?
Talvez a sabedoria que jazia nos livros
equilibrados em três prateleiras acantonadas à
direita da porta de entrada do quarto. De resto,
os passos miúdos da Sra. Maiden e o arfar da
respiração de Franklin diferençando o mundo
animado do inanimado.
O Clube funcionava
durante todo o ano, em dias festivos ou não, no
mesmo rigoroso horário - das 1ó:15h às 20:45h. A
frequência não aumentava nem diminuía segundo as
estações; quase meia centena de pessoas
alternando-se no dia a dia da semana, o que
proporcionava um comparecimento diário de mais ou
menos 12 a 15 sócios. às quintas-feiras, dia
predileto dos iniciados em esoterismo, a
frequência era usualmente completa.
Constava que a ideia de fundar o Clube cintilou no
espírito de um tal Steward, ex-maquinista de
locomotivas, no outono de 193..., apoiado por três
colegas ferroviários, todos de uma formal ou outra
forma vítimas de acidente no trabalho com sequelas
a lhes deformar a aparência. Sabia-se também terem
dois lutado na Índia, sob os estandartes
colonizadores do exército de Sua Majestade e, por
lá, haviam contraído alguma anomalia aparentemente
dermatológica. Porque tal ideia vingou, o Clube
nasceu e prosperou, mas, fora do âmbito dos
frequentadores, ninguém sabia de sua existência. A
única vez que o segredo correu risco foi logo nos
primeiros anos, quando um incidente despertou a
curiosidade alheia.
Aconteceu durante o
funeral do Sr. Kosterbrown, ex-longevo solteirão e
inveterado jogador de bridge nos torneios internos
do Clube. Como era o primeiro caso de morte entre
os associados, ainda não haviam sido previstos
procedimentos para homenagear os mortos e,
simultaneamente, preservar os vivos, no que se
referia ao hermetismo da associação.
O que
transpirou do funeral, além da secreção que os
lenços de xadrez limpavam dos narizes, pois não se
verteram lágrimas, fez parte de sucinto relato de
um sargento da Scotland Yard, um texto ainda
hoje espremido numa pilha de volumes empoeirados,
sob o rotulo de "Casos Insolúveis', extraído de um
livro de ocorrências por meticuloso plantonista
policial a seu tempo:
Retornava de uma
missão nos arredores do cemitério de Canterbury,
quando, compelido por estranho sentimento de
comiseração, vi-me caminhando por suas sombrias
alamedas do lado norte. Avistei um grupo que se
preparava para sepultar alguém. A maioria era de
homens, mas havia algumas mulheres no grupo. De
uma certa distância, todos me pareceram trajar
agasalhos exageradamente pesados para a exigência
do tempo - quase como se escondessem do morto seus
sofrimentos, embuçando-se por entre roupas e
chapéus. Quando mais próximo, observei que eram
curiosamente feios, aliás, excepcionalmente feios.
Porém, comportavam-se com aquela dignidade que mal
ou bem todos nós tentamos dissimular diante do
inevitável. Um sujeito gordo comandava o ritual do
sepultamento, lendo versículos bíblicos
condizentes com a ocasião e recitando orações de
praxe. Ao saudarem o morto pela última vez,
descobriram-se momentaneamente, de sorte que lhes
pude reparar melhor. Jamais havia visto grupo de
pessoas, acho que vinte e tantas, tão
homogeneamente desagradável à vista, embora de
constituição e raça heterogêneas. Deram conta de
minha presença e logo ao final da cerimônia
despediram- se apressadamente, dissipando-se por
entre as veredas do cemitério, preferencialmente
solitários, até a neblina lhes engolfar a silhueta
e sumirem de minha visão. Ainda tentei acompanhar
um grupo de três deles, retardatários, mas, na
altura do portão principal, saudaram-se
rapidamente e tomaram rumos distintos. Não fosse
eu um policial experiente, o fato poderia ter
passado despercebido como tantos outros que
ocorrem nas alamedas dos cemitérios - sabe-se lá
por que em cemitérios -, mas constatei que todas
aquelas pessoas sem exceção, além de
extraordinariamente feias, não pertenciam a mesma
família, inclusive porque dois indivíduos eram
seguramente de raça negra e uma das mulheres era
de raça amarela. Ainda percorri os registros
burocráticos sobre os defuntos do dia, mas tudo
estava tão perfeitamente em ordem que me
constrangi - sem maiores fundamentos a inquirir
que não a feiura do grupo - de admitir ao
administrador do cemitério que procurava por um
defunto presumivelmente feio. Perdoe-me o Criador
se isso nos faz alguma diferença depois de
sepultados. Assim, deixo registrado o fato para
exame de meus superiores que, com certeza, saberão
avaliar a contingência de diligenciamentos a
respeito. Assinado, Sgt. Kirkle, Londres, 12 de
março de 193...
(continua)
(Em O CLUBE DOS FEIOS & outras histórias
extraordinárias - 2ª edição - Editora 7 Letras)
08 de novembro/2013) CooJornal nº 8ó5.
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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