A pedido do autor, estamos republicando esta crônica, em homenagem a
Nilto Maciel, falecido em 26/04/2014.
Olá, Maciel,
Li o seu belo livrinho (no sentido físico), pois é um grande livro em termos
de depoimentos, efemérides, registros de pessoas, fatos e tudo o mais que
cerca o fazer literário e o desfazer da alma. Todas as vezes em que “O Saco” é
citado ainda me lembro das cervejas que tomamos, pelos fins do ano 1976, mais
o pessoal do jornalzinho, num bar pelos lados da praia Formosa, talvez do
Meirelles, talvez da Iracema, ou próximo ao Clube Náutico, ou, parafraseando o
Saramago, Deus saberá. Tenho desse dia (noite) algumas lembranças do Carlos
Emílio, de você, e de outros nomes e vultos que se perderam na bruma do tempo.
A propósito daquele encontro inesquecível sobreviveu na minha memória a figura
do pintor primitivista, Chico Silva. que saía de casa à noitinha a percorrer
os bares nas cercanias das praias. Ele, Chico Silva, é o que diziam por lá, ia
com alguns filhos ou alunos, carregando suas telas. E em cada bar que parava,
tomava umas e outras, numa providencial meia trava, procurando o equilíbrio
pra não vender por menos nem por mais, e tampouco vender tudo de uma vez,
enquanto oferecia suas obras a preços altos e baixos, conforme a cara e bolsa
do freguês. Aliás, naquela noite regada a cerveja e estrelas do céu e da
terra, comprei uma tela com a marca registrada do Chico – a famosa briga de
galos.
Tenho o quadro ainda hoje, bem emoldurado, perto dos meus livros aqui no Rio.
O ano da obra é 1975, com a firma legítima – ao que parece – do Chico Silva. É
uma beleza de pintura, primitivismo puro, dois galos esplêndidos, de coloridos
mil, se engalfinhando e, na minha interpretação, um arremedo da nossa lida
humana, que chamamos de vida, mas, em verdade, na visão primitivista, é uma
espécie de rinha mágica onde brigam o corpo e a alma, ambos sedentos de
imortalidade.
Muitos anos depois, ainda te encontrei em Brasília – fiz um lançamento de O
Clube dos Feios no bar CARPE DIEM – em 25 de maio, uma quarta-feira, de 1994,
a partir de 19 horas, conforme diz o convite, ainda grampeado num exemplar do
livro original e com o endereço que não me deixa mentir: SCLS 104 – Bloco “D”
– Loja,1. Foram cervejas e autógrafos a valer.
Mas cerveja vai, cerveja vem, volto ao COMO ME TORNEI IMORTAL. As suas
crônicas me trouxeram outras lembranças, principalmente dos meus tempos quase
inocentes em Fortaleza, porque bastou nascer pra virar “Féa da puta” como
dizia um tio meu já embarcado noutra dimensão, e também uma papagaia, Rosa,
que foi minha primeira confidente, anos a fio. Falava pouco, assobiava muito,
dizia alguns palavrões quando tinha fome ou era provocada. Trouxe a Rosa,
pouco maior que uma jandaia, para o Rio de Janeiro, dentro de uma caixa de
sapatos (com furos para ela respirar) num avião pinga-pinga. Pois no avião,
dentro da caixa, no meu colo o tempo todo, Rosa, além de sujar os jornais com
que forrei a improvisada gaiola, não me perdoou pela façanha e, de vez em vez,
falava palavrões que, ainda bem, só eu podia ouvir.
Foi emocionante me ver e me reviver em todas aquelas páginas do COMO ME TORNEI
IMORTAL sem conhecer pessoalmente 90% dos homenageados – o que não teve a
menor importância, pois li tudo como se os conhecesse – a todos –. É claro que
conheço alguns, ou de letras ou de bilhetes eletrônicos: Pedro Salgueiro,
Jorge Pieiro, Edmilson Caminha, Raymundo Netto, Carlos Emílio, Soares Feitosa
e outros. Fiquei triste ao ler no livro que o grande poeta Filgueiras Lima –
meu professor e diretor do Colégio Lourenço Filho onde estudei até o 3º ano
ginasial – falecera em 1965 com apenas 56 anos. Aliás, Filgueiras Lima foi
quem nos deu a fatídica notícia, de viva e poética voz, de sala em sala de
aula, sobre o suicídio do presidente Getúlio Vargas, ocorrido no Rio de
Janeiro em 24 de agosto de 1954. Lembro que todos os alunos do Colégio foram
dispensados das aulas imediatamente após a notícia dada por Filgueiras Lima.
Não vou comentar o grande valor literário dos seus textos, porque isso já está
implícito na sua voraz dedicação à Literatura. Mas, creia, reler todos aqueles
nomes outrora familiares para mim, Praça do Ferreira, Dragão do Mar, Estoril,
Casa Juvenal Galeno, Jornal Unitário, Praça José de Alencar me fizeram muito
bem ao espírito. E fique sabendo que morei a não mais de duzentos metros do
Estoril logo que desembarcamos no Ceará em 1951. Também vi, ao vivo, no
Estoril, a mais famosa artista do cinema nacional da época, a loura Eliana,
bem como próximo ao Dragão do Mar, o cantor Cauby Peixoto no auge da fama.
Senti falta, se não pulei alguma linha, dos nomes dos cinemas Rex, Diogo (onde
só se entrava de terno e gravata, mesmo sendo meninote), Majestic e Moderno
que eram do meu tempo, e onde acompanhava os seriados do Batman, do
Super-Homem e as impagáveis comédias de “O Gordo e o Magro”. Lembrei-me até
mesmo do mais famoso ponto de automóveis (táxis) de Fortaleza daquele tempo: O
Posto 9.
Na Fortaleza daqueles tempos, em que palavras como Livraria Alaor estavam mais
perto de Marte ou Júpiter do que dos meus folguedos na Praça da Bandeira,
Praça do Carmo, nas aventuras pelo Rio Cocó, ou pelas dunas do Mucuripe, e nas
famigeradas caças aos calangos e tijubinas com baladeiras artesanais e pedras
de piçarra preparadas por nós mesmos. Enfim, éramos literalmente moleques e
desalmados: matávamos rolinhas, sanhaçus, sibites, e até beija-flores. Havia a
crendice de quem comesse o coração assado de um beija-flor passaria a ter
pontaria infalível para sempre. Durante anos tive dúvidas, em exames de
consciência, se eu realmente comera ou não o coração assado de um beija-flor,
claro que junto com outros moleques, porque andávamos em bandos de oito, dez,
doze. E não é que, em 1963, já no Rio de Janeiro, prestando serviço militar,
em plena tropa, fui campeão de tiro de fuzil da Primeira Região Militar, tendo
meu nome impresso no Boletim do Primeiro Exército. Minha dúvida acabou ali.
Quando cheguei a casa, contei a meus pais a façanha. Eles discretamente
passaram a mão na minha cabeça e nada disseram. Fui ao quintal dar uma olhada
na papagaia Rosa, que ainda vivia (papagaios são longevos) e confidenciei-lhe
a façanha de ser campeão de tiro de fuzil por ter comido, assado, o coração de
um beija-flor no Ceará. Ela me olhou de banda, como fazem os papagaios,
assoviou várias vezes o silvo da família para chamar atenção, eriçou a
esplêndida plumagem e falou repetidamente: “Féa da puta! Féa da puta! Féa da
Puta!”
Mas para não tomar mais a sua paciência, quero dizer que você me proporcionou
além de bons momentos literários, também um passeio no meu melhor tempo vivido
até hoje, e, sobretudo, me ensinou a como ser mortal, de verdade, pois
imortais já nascemos desde que tenhamos alma cearense. E como costumo dizer
aos amigos, saí do Ceará no dia 09 de dezembro de 1956, mas o Ceará nunca saiu
de mim.
Fraterno abraço, e vamos nos falando.
C. Trigueiro
Publicada, originalmente, em 18/10/2013
(10 de maio/2014)
CooJornal nº 891
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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