16/07/2024
Ano 27 Número 1.375
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
VI
Nos últimos dois mil e quinhentos anos,
constatei que nenhum gozo é tão intenso no homem quanto embalar suas redes de
neurônios sob as tendas do pensamento. Esse egotismo é a sublimação do prazer,
deleite superior a qualquer manifestação visceral, erótica, ou sensorial,
principalmente se ocorre no terreno das artes. Daí que ao leitor ansioso é
imprescindível identificar o narrador de uma história, saber de onde ele vem,
o que fez, não fez, desfez, antes, durante, depois, para ficar ruminando
hipóteses sobre o íntimo de quem se lançou à escritura. Pois bem, se possível
chamar de curriculum vitae a litania a seguir, e segundo o critério
multidisciplinar dos Arcanjos, custodiei: profetas, bruxas, rainhas,
centuriões, bárbaros, filósofos, diplomatas, reis, conquistadores... E
plebeus, bandidos, políticos, jornalistas, desocupados, pintores, músicos,
juristas, prostitutas, sacerdotes, espiões, médicos, poetas, coronéis,
escritores, grafiteiros, funcionários públicos e os precursores dos
blogueiros. Enfim, resumo que, conhecido e reconhecido por Mahlaliel,
impingiram-me crer que fui criado por vontade d'Ele. Tenho dois mil quinhentos
e setenta e oito anos, e como não dá para perceber assim de longe, afirmo que
anjos não envelhecem. São como sempre foram, jovens ou anciãos, apesar de três
a quatro dezenas de macróbios andarem visitando o urologista celeste
ultimamente. Bem assim, notei que vem aumentando o número de anjos
interessados em custodiar pesquisadores das indústrias de produtos
farmacêuticos e de cosméticos.
Convém ainda revelar minhas origens. É
importante para os humanos um pedaço de chão demarcado - mesmo ao custo
(fajuto) de gritos tipo assim "Independência ou morte" - e chamá-lo de Pátria!
Ora, minha pátria era o Éter. Sou (ou fui) legítimo cidadão do Cosmo. Como de
resto também devem ser todos aqueles que ainda sabem o Latim e, ao menos uma
vez por dia, me ditam sobre as inscrições de boas-vindas nos portões dos
cemitérios (Stat sua cuique dies), essas fronteiras tão antigas quanto
malvistas e interpretadas.
Tudo bem, mas no mundo globalizado é difícil
definir fronteira. Ou saber onde começam e terminam as fronteiras. Goethe
dizia que as fronteiras do homem são as coisas. Acho que as fronteiras do
homem são as coisas dos outros, digo as mulheres dos outros. Portanto, vou
manter minha condiçãoo de imponderável enquanto puder.
Não à-toa tenho
ouvido intensa voz interior: "Se cuida, Mahlaliel!" Ninguém pense que estou
louco. Tanto não estou louco que obedeço à voz. E me cuido. Pedi permissão às
associações protetoras de animais e aos grêmios defensores dos direitos
humanos para me vacinar contra o mal da vaca louca, gripe do frango, febre
amarela, a tal de dengue, e contra as doenças da vez, já que é meio antipático
falar em doenças da moda. Periodicamente, também me vacino contra raiva,
rancores, mágoas, inveja e ciúmes - males exclusivos das espécies superiores.
E, por via das dúvidas, me previno ainda contra aquelas endemias étnicas que
viram epidemias aéticas.
VII
Entro num assunto polêmico.
Tendo em conta a hipocrisia dos parâmetros terrenos, parecer vale mais do que
ser. Dai tanta decepção quando as pessoas se deixam envolver por aparências
farfalhosas em detrimento de valores autênticos. Nada obstante me cuido, sem
apelar para processos de lipoaspiração, peeling e artifícios do gênero. Minha
aparência é das melhores. Tenho pele branca, músculos torneados e cabelos
cacheados da cor do cobre. Tronco e membros rígidos. E era bem flexível o par
de asas que sustentava nas costas, sem nenhuma alusão ao marketing de
companhias aéreas. Meu rosto é sempre jovem, e nele se harmonizam o nariz
helênico, pequenos olhos vivazes e lábios carnudos, mas sem voluptuosidade -
característica incompatível com a boca de anjo da guarda. Minhas mãos são
irrequietas, expressivas, sugestivas, e os dedos, bem intencionados, digo
bem-proporcionados.
Afirmar que sou belo seria exagero; além disso,
repudio qualquer tipo de narcisismo. Descrevo-me porque a condição humana não
pode prescindir do senso estético, a rigor uma dissimulada manifestação da
sensualidade. Meu aspecto tem a ver com o pincel de Caravaggio. Confesso que
eu mesmo misturei alguns matizes na paleta do pintor. E influenciei-o nos
traços da tela São Mateus e o anjo. Apareci-lhe em sonhos, a fim de que
memorizasse minhas feições e aparente boa índole. Meus trajes: túnica
acetinada de cor sépia, traspassada sobre o ombro direito, cobrindo do tronco
aos joelhos. Calço chancas feitas com o couro de cordeiros sacrificados em Sua
intenção.
No entanto, o rigor canônico obrigou Caravaggio a pintar uma
segunda tela igualzinha à primeira, alterando apenas a expressão de São Mateus
que, segundo os censores, parecia assustado com a presença do anjo. No juízo
dos críticos de então - Ô raça! - semblante temeroso não condizia com a
expressão de santo.
Mais tarde, graças ao vigor de minhas asas, num
momento de distração do seu anjo da guarda, um censor apareceu boiando numa
ribeira do Arno, em Florença. Ninguém ficou sabendo quem o empurrou do alto da
Ponte Vecchio, pois confessar crimes aos superiores implicava rigorosa
inspeção no passado, presente e futuro do confesso. Vali-me da experiência e
fiquei na moita, pois sabia que o tempo celeste não era (e não é) subordinado
a qualquer critério de controle ou medida, daí os arcanjos procrastinarem
tomada de confissões, inspeção de feitos e punição de malfeitos.
Mas
paragens celestes não estão livres de regras com essa e aquela exceção.
Exemplo contundente era o arcanjo Zebaliel inspecionar suas legiões sempre que
lhe dava na telha. Óbvio que nos bastidores nublosos havia burburinho sobre
maus humores e caduquices do arcanjo macróbio. Em verdade, Zebaliel fora anjo
da guarda de Matusalém. Especulavam que o patriarca bíblico vivera novecentos
e sessenta e nove anos, só de pirraça, para manter o arcanjo alerta e dar-lhe
alguma ocupação digna.
Noutros tempos, os humanos encontravam os seus
anjos da guarda com maior frequência. E vice-versa. A Bíblia menciona que
alguns anjos foram punidos porque se deitavam com mulheres de patriarcas ou de
seus descendentes. E também não esconde que, no começo de tudo, havia
incestos. (continua)
(Revista
Rio Total, 04 de outubrobro/2013, CooJornal nº 860)
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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