01/07/2024
Ano 27 Número 1.373
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
IV
Ressalvo que o ato de contar historias é
invenção do homem. Somente o gênero humano é capaz de falsear e subverter o
uso da língua de tudo quanto é maneira, desde promessas de políticos em
campanha, ao tropismo boca a boca nas imagens de telenovelas - delito que uma
parcela das elites comete, outra propaga, outra custeia, outra acoberta.
Delito em cadeia, como se vê. Mas é só trocadilho, ninguém vai preso.
Também resguardo minha semântica imprecisa sob a desculpa de que anjos são
franco-atiradores em matéria literária. Admito excessos ao narrar episódios
mundanos sob a elástica percepção dos anjos, pois muralhas culturais
enclausuram a noção humana de perspectiva e simultaneidade dos fatos. Além
disso, a condição humana é paradoxal: exprime regozijo e sofrimento
simultâneos na ânsia de materializar o tempo, transformá-lo em produto de
consumo e pegá-lo na prateleira da vez. Ora, o tempo é intrínseco a todas as
coisas, mortais e imortais. É inútil a ansiedade do homem visando transpor as
barbacãs do tempo, pois a vida humana ocorre exclusivamente numa penitenciária
sensorial.
Para que estes relatos não criem expectativas de reavaliar
dogmas como, por exemplo, a sexualidade dos anjos, afirmo que as linhagens
angelicais são costuradas, rasgadas e cerzidas sob mistério. Antes que
germinem hipóteses licenciosas a respeito, advirto: as Escrituras não deixam
incertezas sobre o assunto. Basta interpretar os textos com uma dose de
picardia canônica e sem as lentes ray-ban da hipocrisia eclesiástica.
Claro que o tema se modificou na sociedade industrial. Hoje tem anjo
macho, anjo fêmeo, anjo impotente, anjo frígido, anjo esterilizado, anjo
siliconado, anjo de programa e os que não estão nem aí para referências
sexuais - nada a ver com preferências. Porém, modismos não me afetam. Jamais
duvidei do significado de minhas ereções. O que não implica saia por aí
alardeando fazer isso e aquilo com um falo virtual. Todos deviam saber que,
sob circunstâncias apelativas, especialmente marketing de religiões
fundamentalistas, falos virtuais podem adquirir excepcional rigidez,
transformando-se em cajado, bordão, pau puro - gracioso eufemismo de pau duro.
Assumo que estendi raios de tolerância e permissividade em causa própria.
Sem absurdos. Nada alem de brinco descartável no lobo da orelha, de discreto
piercing nasal e tatuagem geminada de raro lepidóptero nas partes globosas do
dorso inferior. E, claro, de vez em vez, a travessura de fazer um fuminho em
busca de outras névoas e esferas, procedimento mais supérfluo que escandaloso,
pois anjos sendo ou não sendo nefelibatas já vivem nas alturas.
Minha
voz é grave, trovejante, característica que me trouxe percalços. Sucedeu que
os arcanjos, para atender à intensa programação dos eventos celestiais,
cismaram de reeducar minha voz ora como barítono, ora como tenor. Visto que o
Canto Orfeônico era matéria obrigatória na formação angelical, tive de
violentar minha natureza inúmeras vezes. Mesmo no Céu, digo entre entes
celestes, tudo tem limite! Certo dia, não só desafinei de propósito como
também falseei quinze vezes um estribilho. Foi na coroação de Carlos Magno,
rei dos francos, mas croata de nascimento, no Natal do ano 800. Conclusão:
expulsaram-me do coral formado por anjos e serafins. Em vez de protestar,
fiquei satisfeito. Nada me aborrecia tanto como hinos exaltando feitos de
guerra.
De resto, cansei-me de trombetas, pífaros, flautas, harpas,
sambucas e liras. Somente retornaria à música séculos depois. Obra do acaso.
Traído e atraído pela melodia de guitarras elétricas. Lá: num pub londrino.
Eis no que deu, substituir o anjo da guarda dos Beatles num fim de semana sem
sol. Suspeito que, no juízo dos arcanjos provectos, foi essa extravagância
musical que me legou o estigma de enfant terrible, e não uma ou outra
prevaricação cometida, sem dó maior, ao me deixar seduzir por ninfas
disfarçadas de querubins. Ah, disfarces! Todos têm seu preço.
V
Confesso a pretensão dos meus escritos. Quero, sem distinção de
etnias, abalar crenças e descrenças. Só assim minha indignação reboará como
artefato terrorista em ponto turístico, estação de metrô, ou prédio de
embaixada. Não vou anunciar a antecipação do Apocalipse, evento já previsto
por leitores terrenos de bom senso, imunes tanto ao febrão neoliberal, quanto
ao socialismo de plantão - e aos misticismos industrializados -, e que
perceberam a irreversível predação do entorno. Tudo claro. Ciência e Internet
estão aí a provar com requintes tecnológicos e animação colorida: durante
milhões de anos, a espécie humana não fez mínima falta. O processo de erosão
da Terra era natural. Com o homem surgiu a erosão inteligente e lucrativa!
Nada lhe escapa. Nem o vácuo. Nem o tempo. O homem conseguiu acelerar o
futuro, mas sepultou a esperança de chegar lá.
A propósito, cansei-me
de ouvir mentiras nos votos esperançosos de Ano-Novo. Não suporto a mensagem
fraudulenta dos réveillons, ano após ano. Estando a hipocrisia das gentes em
permanente reciprocidade, frustrei-me com a serventia de guardar aqueles que
não têm salvação, aliás, a maioria.
Provavelmente vou contrariar
frequentadores de livros e catálogos, bem como internautas que investigam
origens, tipos, legiões, falanges, auréolas, mesteres, plumas, asas e qualquer
referência aos anjos. Garanto: será estorvo passageiro. Tardará o tempo que a
curiosidade humana dedica às vitrinas de um shopping visitado pela trigésima
nona vez. De fato, neste mundo de desencantos, até anjos persas e babilônicos
estão sendo retirados de suas tumbas para servir de tábuas de salvação, pois a
criatura à semelhança e imagem d'Ele, como rezam as Escrituras, está em
extinção. Dentre mil e uma desgraças, sobressai o flagelo da TV que nulifica o
indivíduo e aniquila a espécie - chucha os olhos do homem de suas órbitas,
prostra-o com animação colorida, marketing premiado, ou com a enganosa
interatividade dos reality shows. Decerto é compreensível o enorme
interesse das pessoas por anjos, afins e assemelhados, visto a pedreira que é
enfrentar o mundo sem proteção de asas plumosas, mãos invisíveis, auras de
mansidão. De todo modo, será esforço inócuo - melhor abrir o jogo. No mundo
terreno, fornicar o próximo é compulsão diuturna em todos os sentidos - mesmo
virtualmente, com o mouse.
Quanto ao recurso literário (maneiro) para
expor estas confissões, em vez de usar o cinema ou mesmo a internet, a escolha
não foi por romantismo. Na liturgia dos anjos, o livro permanece como o
sacrário natural do conhecimento. O exemplo a seguir pode levantar suspeita,
mas quando os Arcanjos me desornaram, recolhendo-me asas, vestes, halo,
chanças, alabarda, sambuca e aquelas nuvenzinhas precursoras do skate,
deixaram-me meus manuscritos e plumas. Tal generosidade (estudada) evitou
conflitos que poderiam lhes atormentar a consciência de escribas celestes.
Consciência que, logo se vê, eu viria perder devido às minhas relações
promíscuas e inevitáveis com o gênero humano.
(continua)
(Revista
Rio Total, 27 de setembro/2013, CooJornal nº 859)
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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