16/06/2024
Ano 27 Número 1.371
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
I
Tudo começou porque pensei além do
permitido nas cortes celestes. Aliás, porque solicitei ao arcanjo de plantão,
dezenas, centenas de vezes, um encontro com Ele - o Onisciente, ou Architecto,
como alguns preferem. Só queria saber por que Ele permite tanta desigualdade
entre os homens, enquanto as demais espécies nascem, vivem e morrem sem
oscilações de equidade, numa existência digna, do início ao fim. Também queria
perguntar-Lhe olho no olho: por que entre os homens não existe nada mais
distante que o próximo?
Mas o encontro me foi negado durante séculos.
"Quem duvida dos Seus desígnios não merece ir à Sua presença" era a desculpa
que sempre me davam. "Mandou-O para aquele lugar", pensará o leitor
impaciente, sequioso por dissensões, rompimentos, querelas. Mas não o fiz. Não
teria sentido contrariar voz uníssona: "Ele está em toda parte." Continuei
aguardando um encontro, mas séculos se esfumaram. Resultou que nunca O vi.
Então, decidi raciocinar, em vez de acreditar cegamente em tudo o que me
haviam ensinado que existe. Ou no que sempre existiu. Concluí: impingiram-me
crer não só que Ele existe, mas também na necessidade de que Ele exista. E se
perpetue. Ora, acreditar na ideia de que alguém, há bilhões de anos, tenha
bancado, incógnito, sozinho, a construção do Universo sem levar nenhuma
vantagem, já é suficiente para desconfiar do que estamos fazendo aqui. E
aparentemente de modo gratuito.
Por isso questionei não só a Sua
existência, mas também tudo em volta. Constatei que a versão dada à origem do
Universo e a sua parafernália infinita era maior que a verdade. Não cheguei a
me decepcionar. Já desconfiava que as obras da Criação sempre estiveram a meio
caminho entre a verdade e a versão. Ou, no mote cibernético, entre o real e o
virtual.
II
Tornei-me um anjo da guarda dissidente. Meus
pares foram menos sutis, tacharam-me de rebelde, devasso e inconfidente. Os
conservadores acusaram-me de traição e hediondez. Os liberais crêem que
ensandeci. Em verdade, minha loucura reside no fato de que constituo ameaça
aos dogmas e oligarquias celestes.
Decerto ninguém avalia quanto foi
doloroso fazer estas confissões, violar tradições milenares, renegar códigos e
doutrinas, transgredir costumes, imbuir-me de nova ordem interior. E não menos
conflitante, apesar de aparente cinismo: abrir mão de trajes, acessórios,
espaços, regalias, imagem, invisibilidade, segredos, reputação, poderes, armas
e artimanhas de anjo da guarda.
Minha mudança de comportamento gerou
polêmica e dissabores nas paragens etéreas. Houve consequências. Baniram-me do
convívio com a parentalha de arcanjos, serafins, querubins e assemelhados. Com
muita força de vontade - e algum apadrinhamento, porque nenhum anjo é de ferro
- consegui manter meu estado de imponderável, embora minha indignação seja
cada vez mais visível, principalmente no papel.
Anteriormente, meus
escritos eram apenas registros mais ou menos desordenados de experiências
vividas. Não multo longe de um fabulário. No escoar do tempo e amontoar das
dúvidas, os relatos foram se transformando e assumiram a forma de livro -
ocorrência já no mundo terreno. Daí tive de me submeter aos regimentos dos
direitos autorais que, segundo me explicaram, servem para proteger a obra de
alguém contra obras de outrem.
Não sei como desconfiaram que permeei
este livro com escritos de vários autores. Claro que mexi nos textos
agregados. Não em todos. Alguns parecem levar a impressão digital do autor,
sendo impossível tirar ou pôr uma vírgula porque o estilo reage. Assim, tentei
adotar resultante de estilos literários do Céu e da Terra. Trabalho em vão. Os
fantasmas de cada escritor interferem - escrever é um terço de confissão,
outro de penitência, outro mais de resistência; o resto é indignação.
Nada de furto nos meus escritos, tampouco plágio. As histórias de que me vali
(não digo aproveitei porque esse verbo dá ideia de cargo público) foram
refugadas por seus autores. Confesso que extrapolei ao espionar escritores de
primeira linha. Mas enriquecer minha escritura com ideias alheias passou de
ambição a obsessão.
III
A fim de que o leitor não se apresse
a julgar meu caráter, sugiro a leitura deste livro exclusivamente nos recantos
nobres da casa. Do alto da experiência de anjo da guarda, conheço gente fina
que só gosta de ler onde se faz outra coisa. (continua)
(Revista
Rio Total, 20 de setembro/2013, CooJornal nº 858)
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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