01/02/2024
Ano 27 Número 1.353
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Nos confins
paraibanos, rumos de Coitezeiras, Francisco, meu
avô paterno, músico, encantou um bilhete no
sopro do clarinete. A mensagem soprada varreu
léguas, marcos, fronteiras e chegou a
Parnamirim, terra potiguar, onde vivia Maroca,
minha futura avó. Maroca, com os olhos da cor do
céu, desencantou o bilhete musicado e não parou
de cismar. A réplica levou a eternidade de três
luas no lombo de jegue amuado e montado por um
abestado. Depois de ler o bilhete de Maroca,
Francisco botou o clarinete no ombro e o berro
no cinturão. Juntou seus teréns numa trouxa e
cavalgou as léguas da precisão. Até hoje ninguém
sabe se Francisco pediu a mão de Maroca ou se
Maroca o agarrou pela mão. Sabido e comprovado é
que, chegando ao litoral, arranjaram bilhetes
num veleiro e arribaram pro Norte da promissão.
No baú familiar de achados e perdidos, um
bilhete dizia que meu avô materno, Manuel,
cearense rijo como as rochas monolíticas da sua
Quixadá, sobreviveu à penúria espalhada pela
“seca de setenta e sete” (1877) e deu muito que
falar. Pois Manuel deu o sangue e o suor na
construção do açude do Cedro, até que, cansado
do sertão, cismou com a arribação. Vendeu as
sobras dos seus roçados e o que lhe restou da
criação, salvo a mula que montou no rumo do
litoral. Comprou um bilhete de navio, sabe Deus
se a vapor, e arribou pro Norte da promissão. No
auge do ciclo da borracha, Manuel se embrenhou
nos seringais e fez dinheiro no alto Juruá.
Quando inteirou vinte e um contos de réis,
enfiou um bilhete numa bola de seringa que foi
boiando até os pés de Izaura na outra margem do
igarapé. Minha futura avó leu o bilhete e com
apenas 13 anos, já dona das próprias ventas, se
benzeu e rezou “Nossa Senhora me livre de todo o
mal”. Em seguida, desfez a rede, fez a trouxa, e
juntou o seu destino ao de Manuel: “Adeus,
seringal!”. Os tempos que vieram foram de muitas
arribações, trocando bilhetes de motor, de
alvarengas, de batelões e de outras montarias
fluviais, inclusive navios-gaiola. Engendraram
sete filhos entre o azul do Tapajós e o lago do
Manaquiri no baixo Solimões.
Meu pai,
músico, de nome grego impronunciável, mais
conhecido por Teté, mandou um bilhete encantado
pra Ceci, minha mãe, no outro lado da rua
poeirenta, em Manaus, quando a segunda grande
guerra ensaiava pra começar. Desencantado o
bilhete, marcaram encontro com hora e lugar
musicados: em frente ao coreto da praça, assim
que a banda parasse de tocar. Juntaram vidas,
destinos, quatro filhos, redes, trapos, trecos,
teréns, flauta, flautim, sax, clarinete,
compraram bilhetes do Almirante Alexandrino,
navio do Lóide a vapor, e arribaram pro Ceará.
Na praia de Iracema, minha mãe fez um
bilhete pra professora dizendo que naquela
semana eu não iria ao grupo escolar. E um
bilhete explicou: “com catapora da braba, é
melhor o menino sossegar”. Depois do resguardo,
já sarado, danei a escrever versos de pés
quebrados, e mandei bilhetes pra dezenove
meninas das redondezas, cada uma mais linda que
a outra, e sonhei o dobro das que contei nos
bilhetes: pois já eram trinta e oito as que se
embeiçaram pra me namorar. Em Fortaleza, vi o
primeiro bilhete de trem, mas meu pai não me
deixou na maria-fumaça embarcar. Só me permitiu
um bilhete pra olhar o trem de perto, pois era
uma peça de museu, pros lados da Praça José de
Alencar.
Ainda no Ceará, meu pai comprou
um bilhete de loteria e sonhou que estava rico.
Mas o prêmio foi de poucos mil-réis, já que o
número sorteado era só uma aproximação. E de uma
coisa não me esqueço dos meus tempos de moleque:
um primo de criação achou um bilhete de rifa no
chão. No sorteio, durante a fogueira de São
João, ganhou um patinete, um saco de mariolas,
um pião e uma molecada correndo atrás dele:
“Pega ladrão!”.
Naquelas alturas da vida,
fiquei sabendo que bilhete servia pra muitas
coisas. Minha mãe contou que o marido da vizinha
recebeu o bilhete azul e a família estava
passando necessidade. A mãe, sem nenhum rococó,
fez um ensopado de peixes – biquaras e ariacós –
com muito arroz e pirão. Em seguida, escreveu um
bilhete e me chamou no beiral da porta: “menino
leva essa panela pra vizinha, mas não se esqueça
de entregar o bilhete que boto na tua mão.”
Então era isso: bilhete servia mesmo para
muitas coisas da vida e até da morte. Aliás, a
primeira pessoa morta, mortinha, que eu vi de
perto, roxinha feito azeitona, foi Maristela.
Diziam que tinha quinze, dezesseis anos. O
namorado abandonou a bichinha que apaixonada e
buchuda tomou meio litro de cajuína com
formicida e estrebuchou na calçada. Deixou dois
bilhetes enfiados no fecho das alpercatas. Na
alpercata do pé direito, fez um bilhete pra
família pedindo perdão. Na alpercata do pé
esquerdo um bilhete pro namorado pregando
maldição. Naquele dia aprendi que bilhetes
também serviam pra todo tipo de provação: um
cabra podia ficar viúvo e não ter casado não.
Fiz uma arraia colorida e arretada, soltei a
linha da maçaroca e botei a danada no ar. Na
ponta da rabiola, botei um bilhete de tal jeito
que, embioca daqui, embioca dali, o bilhete caiu
no quintal da Mariazinha, moça feita, que eu
sonhava namorar. Ao ler o bilhete amoroso,
Mariazinha fez uma figa, subiu na cerca do
quintal, me acenou uma banana com o antebraço,
me mandou praquele lugar passando as mãos no
avental.
Quando cresci, ganhei e rodei o
mundo, vi bilhetes em trens, barcos, barcaças,
navios, aviões, circos, cinemas, museus, boates,
teatros, bondes, ônibus, rodas-gigantes,
montanhas-russas, carrosséis. Bilhete em tudo
quanto era idioma:billiet, biglietto, billete,
ticket e noutras línguas em que bilhete é baita
palavrão. Moral da história: mundo rodado, tempo
passado. Enquanto isso, os bilhetes a mão foram
findando, findando, findando. Agora é tudo
bilhete eletrônico, a tal mensagem digitada que
apelidaram de torpedo, emeio, ou frase tuitada,
e que acende e apaga numas telinhas brilhantes
de nomes estranhos, “esmartefone, celular,
tablete” que parecem coisas de satanás, pois
levam os bilhetes a toda parte e a qualquer hora
sem precisar sair do lugar seja pra frente seja
pra trás.
Enfim, hoje as tecnologias
impõem os fazeres das pessoas e do mundo. E
mostram que o tempo dos bilhetes de verdade
acabou. Pensava assim, até reencontrar um
parceiro de conversa vai conversa vem, dos
tempos de O saco literário: o cearense Nilto
Maciel palestrando na Academia Brasileira de
Letras em pleno Rio de Janeiro. Entre falas e
abraços, com saudades de outros tempos, fiquei
encucado com o que ele me falou em fluente
convicção. Por incrível que pareça, o Maciel me
disse que ainda acreditava e acredita em
bilhetes, isso mesmo, e em bilhetes literários,
talvez até feitos a mão, e me pediu esse
arremedo de escrito, escritura, escrituração,
pois, rasgos de literatura... não sei, não.
Então, pra escrever um bilhete com trejeitos de
outras eras me disse ainda:“Trigueiro, me sopra
um bilhete fagueiro que eu solto o bicho no
espaço Literatura sem Fronteiras.“
Diante
da ideia do cabra pai d’égua, fiquei a cismar do
mesmo jeito que os meus avós lá se vão cento e
tantos anos. Concluí: no Ceará dos meus tempos,
nas dunas que o vento soprava pelas bandas do
Mucuripe, a linha que a vista alcançava
separando o céu do mar não passava de pura
visagem. Porém, anteontem despertei assustado.
Tive um sonho danado. Mas me dei conta de que
estava acordado e lembrei bem lembrado que a
linha no horizonte onde as jangadas se perdiam
existia mesmo, não era visagem, nem quimera, nem
utopia, nem surto ou imaginação. Por isso tenho
certeza de que esses bilhetes que fiz agora e aí
acima arremedados só vieram à memória porque os
escrevi imune a cercas, cercados, marcos,
sertões, cacimbas, açudes, brejos, olhos d’água,
riachos, igarapés, rios, mares, montanhas,
nuvens, secas, desertos, florestas, neve, gelo,
degelo, tufões, tempestades, tornados, fases da
lua, estações, meridianos, fronteiras. Porque os
escrevi com o pedaço cearense da minha alma, ou
seja: em permanente arribação.
Editado em
Literatura sem Fronteiras
(13 de setembro/2013)
CooJornal nº 857
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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