01/09/2023
Ano 26 Número 1.332
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Conjeturo. Toda confissão é impregnada de
impurezas. De sevícias que o tempo faz, apaga,
refaz, deixa, leva ou traz. Dá no mesmo. Não
obstante, vasculho mochilas, baús, escaninhos,
pilhas, cortinas, brechós e sebos da memória.
Aparentemente, honestas intenções, pois de
lembrança em lembrança o artífice do meu
envolvimento com Larissa foi a interesseira
lógica humana. Haveria mais lisura se dissesse
lógica aprendida, já que, sabidamente, o homem é
animal ensinado. Se bem ou mal ensinado não me
cabe julgar. Só posso falar do Otávio que uso e
encarno.
Para começar: minha timidez é
morena pálida, dissimulada, censura oitenta
quilos sob um metro e setenta e três, espreita o
mundo com nariz de cera, olhos celestes, cílios
nublados, boca de siri, queixo furado,
feromônios nos poros, caracóis na cabeça.
Para rematar: a despeito da timidez que
carrego, escalei a montanha das isenções
emocionais até chegar à neutralidade do
pensamento e esmiuçar meu caso com Larissa.
Patamar difícil. Ainda bem que sou biólogo. Sei
que a condição humana tende à tragédia. Contém o
pathos predatório da animalidade. Na verdade,
viver é eufemismo de predar. E o planeta está aí
escancarado e a derreter-se para quem quiser
comprovar. Existir implica predar seja lá o que
for. É trágico. Mas é isso: até a minúscula
ameba contem sua grandeza trágica. Se alguém
duvida é porque não sabe a causa da elefantíase.
É inevitável revelar meus cacoetes de
cientista. Mas esclareço que não sou um
protótipo do cientista louco a futricar a
essência dos seres sem se importar com o que
existe além do processo vital. Ao contrário,
interesso-me tanto pela finalidade da vida
quanto pelo objetivo da morte. Ando perto de
retirar esses lacres. Hora dessas, Deus que tudo
sabe e não diz a qualquer um se abrirá comigo,
ou provavelmente com Larissa, minha adorável
cunhada, que vive de pôr nua a alma das pessoas.
Pois é. Eu dizia que não consigo esconder
minha formação científica. Afinal, ninguém
esconde tudo o que gostaria. Acho que excessos
de vigília estimulam traições do subconsciente.
Porém, pior mesmo é ser corno sabido feito o
marido da doutora Larissa, sujeito inteligente,
super ilustrado, papo-cabeça, capaz de
equilibrar com elegância um par de chifres no
lugar apropriado e ainda argumentar que a
espalhafatosa armação não e exclusiva dos
corníferos.
Conjeturo. Tenho mil e um
pontos de vista para explicar meu envolvimento
com a irmã de minha mulher. Inclusive a condição
de saber com pormenores o que rolava e não
rolava entre Larissa e o marido. Graças
principalmente, claro, às nossas sessões de
psicanálise. Foi ali que tudo me alumiou, de
repente, como sucede àqueles poetas que,
inconformados com as limitações da visão humana,
põem os olhos fora da órbita para enxergar
outras dimensões, sóis minguantes, estrelas
virgens, seios saturninos, cometas menstruais,
planetas que um dia Deus há de parir.
Convém retornar aos sebos da memória e pôr dois
dedos de ordem na história. Fixo o pensamento
nas imagens de foto neuronal que carrego e
merecedora de exposição a holofotes. Tudo bem,
apresentações são indispensáveis. Larissa: um
metro e setenta e três de carne macia, ossos
fortes, pecados geniais. Até aí nada demais. A
alquimia divina faz com o barro humano obras
monumentais. Metade deusa, metade poema,
descrevê-la é convulsivo. Quando tento, me
borro. Se .não tento, já me borrei. Sempre ela:
maçãs do rosto colhidas do paraíso, boca
profissional, lábios amadores, canto de sereia,
olhos de gazela, nariz fatal, pescoço de garça,
cabelos a cavalo, torso pintado a óleo, seios
adolescentes, cintura a palmo, ventre livre,
púbis selvagem, sexo alagadiço, mãos estreladas,
pés de anjo, coxas de alabastro sustentando o
monumento e, nada obstante, língua de mulher.
No inicio, julgava absurdo suspeitar que
minha adorável cunhada me induzira a
conquistá-la. Mesmo admitindo que eu sinalizara
a favor. Psicanalistas de consultório
sentimental dizem que romances proibidos só
acontecem se o envolvido sinaliza verde ao
envolvente. Depois, sopesando aspectos
sexualmente corretos, como é de moda estilizar a
hipocrisia, faísca maliciosa me atiçou. Esmiucei
o vaivém do que me passa, passou, passará pela
cabeça, e senti um movimento frenético de carga
e descarga dos neurotransmissores.
Insone, lá pelas tantas, conjetura malévola
soou, "Nada de culpa, Otávio!". Em vão tentei
silenciar os lobos cerebrais que começaram a
ladrar, "Vai em frente, Otávio!". Sempre insone,
vagando pelas estepes memoriais, onde os
pensamentos são lobos que devoram os minutos sem
sair do lugar, finalmente um uivo longo e
teatral fez eco no despenhadeiro das lembranças,
"Larissa te seduziu".
(Publicado em
LIBIDO AOS PEDAÇOS – Ed. Record – 2011 – Rio
de Janeiro/RJ) (06 de setembro/2013)
RT,
CooJornal nº 856
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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