01/06/2024
Ano 27 Número 1.369
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
(Publicado no Jornal do Brasil -
13.10.1987 - Rio de Janeiro) 1. Quando o presidente Ronald Reagan
confundiu-nos com nossos irmãos bolivianos, o episódio, além de enriquecer o
anedotário diplomático, provocou um beicinho no orgulho nacional e relançou à
polêmica o pouco caso dos norte-americanos sobre o que se passa ao sul do Rio
Grande.
2. Hoje, diante da cognominada transição brasileira, com fortes
matizes do caos político e econômico que caracterizaram a Bolívia tanto tempo,
o anedotário carioca bem poderia resgatar a imagem de Reagan, reconhecendo-o
como "homem de visão", capaz de enxergar não só além do Rio Grande, mas também
do Rio Guaporé - e constatar (sorry!) que por estas plagas do Cone Sul não ha
grandes diferenças.
3. À parte esses meandros anedóticos, a transição
brasileira implica desafio que transcende puramente a reestruturação dos
sistemas político e econômico, aspectos suscetíveis aos olhos do Poder, ainda
que a propaganda do governo apregoe "tudo pelo social".
4. E necessário
chamar a atenção para um fenômeno surgido na célula da sociedade durante os
últimos anos e que vem demonstrando o seu potencial desintegrador. Sua ação é
sistêmica e escalar. Agride indiscriminada e impunemente todos os grupos
sociais, todos os cidadãos.
5. Em verdade, cessados os efeitos
anestésicos do milagre econômico, da euforia da redemocratização e do aumento
da permissividade nos costumes, a sociedade brasileira parece imergir em uma
crise de anomia - na acepção sociológica de Durkheim - ou seja, em um processo
de desintegração das normas sociais.
6. Qualquer cidadão comum pode
constatar que estamos atravessando um período de enfraquecimento de valores em
todos os níveis, de tal sorte que as normas sociais se deterioram, subvertem e
desintegram.
7. O impacto desse tipo de fissão em cadeia atinge o
padrão, a regra, a lei e o costume. Refaz a ética e desfaz a moral. O que não
se altera caduca ou fenece. O anômalo torna-se normal. 0 permanente rareia
enquanto o transitório fica. Institucionaliza-se a transição.
8. Sob a
égide da transição desmedulam-se a ordem e a autoridade, e surge uma moral
imprecisa, inconsciente sem condições de estabelecer uma disciplina perene,
porque as manifestações da vida coletiva vem sendo despojadas da ação
moderadora da regra.
9. Nessa devastadora anomia, nessa desestruturação
de normas e valores é que se instala e pulula a impunidade Os exemplos estão
em toda parte e ao alcance das mãos: na mão que apedreja o presidente da
República; na que se compromete em campanhas eleitorais; na que empunha
pistola clandestina para a guerrilha urbana do dia a dia, na que vasculha o
bolso do contribuinte ao decretar e desdecretar impostos; na que cobra ágio ao
consumidor ou na que corrompe as concorrências públicas. Naturalmente que nos
segmentos econômicos da sociedade, onde a moral é mais flexível, a anomia
tende a se propagar com maior celeridade.
10. Quando impera a anomia,
qualquer ponderação de valores é caótica, e uma febril compulsão tende a
germinar na vontade individual e com anuência coletiva. Tanto faz burlar uma
fila, desrespeitar um semáforo, inadimplir crédito interno ou externo,
descumprir padrões industriais de qualidade, justiçar na urbe ou no campo,
leiloar verbas e cargos públicos. A anomia é uma patologia social que atinge o
corpo e a alma da sociedade.
11. A gravidade excepcional desse estado
de coisas é que um processo de contínuo desregramento plasma a aparência
pluralista das liberdades democráticas, mas na realidade superalimenta o
embrião das áspides totalitárias, sempre dissimuladas nas sociedades sem
maturidade política ou em processo de desorganização econômica.
12.
Segundo Durkheim, para que a anomia tenha fim é necessário que exista ou se
forme um grupo onde se possa constituir o sistema de regras que faz falta. Não
houvesse o sociólogo alsaciano apresentado essas ideias no século dezenove,
diríamos que os seus ensaios sobre a anomia inspiravam-se na situação
brasileira dos nossos dias, onde temos até uma assembleia constituinte que
poderia ser o grupo salvador.
13. No caso do momento brasileiro, não é
que faça falta um novo sistema de regras, como muitos querem crer, para se
impor uma Constituição mágica, capaz de substituir o empírico pelo formal, a
realidade pelo modelo, a pobreza pelo desenvolvimento. Todos sabemos qual o
destino da nossa miríade de leis, códigos e regulamentos, desde a mais
elementar regra de trânsito às linhas mestras da carta magna.
14. Sob o
ângulo da moral econômica, não há dúvida de que o maior problema da atualidade
brasileira é a dívida externa, eis que ameaça cercear a sociedade como um
todo. Como as repercussões da anomia ultrapassam as nossas fronteiras, os
banqueiros credores preferiram esperar a implementaçãoo de um novo sistema de
regras e governo no país, para poderem definir a renegociação da dívida.
15. Essa atitude leva-nos à reflexão de que a pujança do sistema
financeiro internacional foi construída não só com capitais, mas sobretudo com
outro componente básico: um sistema de regras - antítese da anomia - embora se
saiba que a moral econômica regente tenha sido flexionada em via de mão única.
16. Durkheim entendia a sociedade como um conjunto de ideais alimentados
por indivíduos que fazem parte dela. Esses ideais seriam movidos por uma
potência moral capaz de impor respeito à regra. No Brasil, não é um novo
sistema de regras que faz tanta falta, mas sim uma supremacia moral que
discipline a liberdade individual e a ordem coletiva. Essa supremacia moral é
que poderia ser o legítimo antídoto para a anomia brasileira, mesmo tendo de
admitir que, nas estruturas capitalistas como a nossa, sem liberdade econômica
(poder aquisitivo), tanto o indivíduo como a sociedade possuem apenas
liberdade nominal.
(Em MEU BRECHÓ DE TEXTOS – Ed. Imprimatur
– 2012 – Rio de Janeiro/RJ)
(30 de agosto/2013) Revvista
Rio Total, CooJornal nº 855
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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