01/06/2022
Ano 25 Número 1.274
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Pessoas de bem preferem a hipocrisia ao
escândalo. Será verdadeira essa premissa? Às vezes
acho que sim, outras vezes acho que não. Tomo por
base meu prontuário sentimental. Isso mesmo.
Ninguém diz nem vai dizer, mas todo mundo tem um.
Camuflado, enrustido ou sepultado. No coração?
Pouco provável. Seria pieguice incompatível com a
moral da pós-modernidade. Na memória neuronal, vá
lá, a reprimir sentimentos inconfessáveis. Se bem
ou mal vividos, nem Deus saberá. Pois é. Agorinha
mesmo repasso pela milésima vez as imagens do meu
caso com Larissa. Na verdade, ela urdiu
envolvimento tão intrincado entre nós dois que não
sei onde e se fui diabo sedutor ou alma seduzida.
Desde então me desconheço. Não sou quem era ontem,
o bom moço de anteontem nem o Otavio do réveillon.
Pior. Ouço murmúrios, futricas e ti-ti-ti. Claro
que reajo. Elaboro mil desculpas. Porém, amar a
cunhada não é só questão de gana. Talvez seja
atavismo. Enfim, transar por transar ainda e
humano.
Dizem que culpas ruminadas
amplificam a voz da consciência. Daí, talvez,
essas murmurações que me perturbam. De fato,
sempre fui preciso e justo nos meus atos. Tanto
assim que ao me envolver com Larissa, de caso
pensado e remoído, preservei limites do decoro
socialmente aceitos. Evito demonstrações de amor
em público, resisto às tentações dos celulares e
não me ligo em orgasmos virtuais. Em suma, rejeito
emoções da onda tecnológica. Minha
sensibilidadenão tem a concisão dos chips nem a
indiferença dos códigos de barras.
Onde eu
estava? Ah, sim, falava de murmurações interiores.
Acho que alguém puiu meus tecidos nervosos, vazou
o cerebelo e instilou na minha alma segredo de
três que o diabo fez. Terá sido o marido da
Larissa? Já sei. Ele percebeu o que não devia e
minha adorável cunhada sacou o que ele sabia. E aí
as coisas evoluíram de jeito. Armados de suspeitas
mútuas discutiram na sala, com acusações de parte
a parte, muita classe, falas polidas, gesticulação
estudada, sem cacos de vidro nem dano às obras de
arte. Lá pelas tantas, já os pingos nos is e
respingos na cama, "Tudo bem, meu amor', "Deixa
pra lá, meu querido', "Te adoro, meu anjo', "Vem
cá, amorzinho', "Vira assim, minha paixão",
"Devagar, meu fofo". Pessoas de bem preferem tudo
no seu lugar.
Antiga sabedoria diz que em
matéria onde entra o homem na mulher a melhor
prova do gosto é a que antecede o desgosto. Será?
Não sei. Daí minhas dúvidas e ruminações
diuturnas. Preciso saber se em histórias de amor
ilícito Deus faz vista grossa às estripulias do
roteiro. O problema é que Deus nunca
responde.Talvez não responda a qualquer um. Ou só
atende aos cadastrados nas Alturas. Resta-me o
constrangimento de admitir romance entre cunhados
como obra do acaso, sem concessões às proezas do
destino e tramas do dia a dia.
Por
experiência, sei que amor entre cunhados não fica
bem em sítio eletrônico, diário de blogueiros,
mochila de nerds, corrente de orações. Se tachado
de perversão, boa desculpa haverá. No plano
psicológico, claro. De mais a mais, infidelidade
amorosa em reduto familiar não tem quê de
falsidade, selo pirata,s enha furtada, validade
vencida. Atores, falas, cenário, enredo, com ou
sem o diabo rindo, tudo é feito às claras. O
fingimento é original.
Tendo em vista que a
infidelidade masculina é desculpável nos foros
acadêmicos, sob argumento de que a Mãe Natureza
respalda os semeadores da perpetuação, decidi
pesquisar nos saberes antigo e moderno o berço do
desvio feminil. Metade do que descobri me tira o
sono. A outra metade toda mulher saberá. Em
resumo, para o bem dos casais que vivem mal e para
o mal daqueles que vivem bem, constatei que a
tendência feminina à traição vem codificada ao
acaso no genoma de alguns espécimes. E qualquer
biólogo de plantão sabe que a índole errante uma
vez gravada no texto genético é irreversível e
exclusiva. Não tem saída, jeito ou macete. Cornear
é preciso.
Tal descoberta gerou
desdobramentos nas minhas ruminações, pois nossa
memória social é refrataria à infidelidade da
mulher. Se os costumes são esses porque o mundo é
obra de macho, segundo os livros sacros, convém
não apressar julgamento. Dia desses a mulher vai
recorrer, embargar, fazer e acontecer. Ecom apoio
da mídia — parceira de fé, véu, grinalda, buquê e
cachê nocomprimento da língua — mandará ao inferno
as santas escrituras. Mas não parei aí. Verifiquei
que ambiente, cultura e família também influem no
curso da infidelidade feminina. E ainda: graças
aos avanços científicos na interpretação dos
processos de reposição hormonal constatei que
variações bioquímicas são determinantes em
questões de a mulher trair ou não.
De todo
modo, em matéria de prontuário sentimental não há
como fugir do lugar-comum "cada caso é um caso".
Face aos melindres e logros do meu envolvimento
com Larissa, confesso que no meio da corrente
reneguei o instrumental científico e adotei
procedimentos nada convencionais. Sim, aos chupões
consegui arrancar segredos do seu prontuário
sentimental: episódios com personagens vestidos a
rigor e despidos de pudor. Da mesma forma,
desencantei-lhe meia dúzia de preferências
lascivas, apesar da sua libido dissimulada com
verniz esfíngico. Não nego o choque que levei ao
trazer à tona sua lassidão. Desde então procuro
ser indulgente às volúpias do amor espúrio. Foi
difícil. Mas a voz maviosa, digo insidiosa, de
Larissa me convenceu, "Otavio, nem tudo que
profundo está significa que mergulhado fique".
Finalmente, pesquisei mistérios da
infidelidade platônica, seja lá o que isso queira
dizer aos que nunca a experimentaram. Concluí que
amantes platônicos acabam vítimas de renitente
percussão na consciência acusando-os de não terem
amado o amor como deviam. Deduzi que envolvimento
sempre a ponto de acontecer, mas que jamais
acontece, acaba em dupla ressaca sentimental. De
minha parte, provei o amor espúrio bem provado. Só
não posso negar, fiquei viciado.
Porém,
esses murmúrios que me obrigam a rever noite e dia
as páginas do meu envolvimento com Larissa talvez
sejam armadilhas do subconsciente. Daí adecisão de
não me deixar enganar nunca mais. Reconstituirei
tim-tim por tim-tim meu prontuário sentimental. De
próprio punho. Turbinado, claro. Vivemos tempos
digitais.
Daqui em diante só precisarei da
inspiração que um bom e velho destilado pode muito
bem catalisar. Em doses litúrgicas, que não sou
blindado. Além do mais, na inexistência de um
confessor formal que não eu mesmo, seria mais que
justo destilar literalmente a boa-fé do meu lado
confesso. Nas circunstâncias, acho que este
prelúdio confessional é um bom começo. Um dia,
quem sabe, Larissa melhor dirá.
(Publicado em LIBIDO AOS PEDAÇOS – Ed. Record – 2011
– Rio de Janeiro/RJ) (23 de agosto/2013)
CooJornal nº 854
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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