01/05/2024
Ano 27 Número 1.365
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Ao exumar sepulturas no
sertão, achei o texto a seguir preservado numa caixa de madeira junto dos
ossos da falecida. Nos tempos do avô, quase tudo tinha raiz. As
pessoas tinham raiz do cabelo, raiz da unha, raiz do dente, raiz do pelo, raiz
do tumor, raiz do medo. No quintal havia raiz da planta, raiz da árvore, raiz-amarga, raiz-forte, raiz-doce. Na boca do mato cresciam raiz-de-frade,
raiz-de-cobra, raiz-do-sol, raiz-de-laranja.
Na sala de aula os
radicais da raiz quadrada infestavam o quadro-negro durante o ano todo, mas
nas provas finais mandavam extrair a raiz cúbica.
Dores de barriga
acabavam num intragável chá de raízes. Contra a tosse, se xaropes não
resolviam, a raiz-da-serra estava lá, de prontidão, com ar puro permanente.
Intolerável, isso sim, era a monocórdia discussão dos adultos por bens de
raiz.
Nos sermões de domingo, o padre Gabriel apontava o pecado como a
raiz do sofrimento humano. Frisava a precariedade da nossa passagem terrena, a
obsessão com raízes vãs, enquanto exaltava as delícias da vida eterna entre os
anjos no céu. Mas só para os que merecessem. No entanto, exceto meu avô,
ninguém reparava que o religioso começava a beber o vinho da missa no sábado,
véspera da cerimônia.
Raizes daqui, raizes dali, meu ancestral além de
reconhecido doutor-de-raiz, gozava fama de autoritário, astuto e decidido. De
vez em vez, largava o vozeirão sobre caminheiros que arriscavam um olho
comprido na fazenda a perder de vista. A cena desfazia o isolamento da
casa-grande, pois quase uma légua se espichava entre a porteira do vizinho e a
sua fazenda.
Nos anos pares, a chuva abria um olho-d'agua na cara
engelhada do caminho. Nos anos ímpares, o sol fendia a terra até que ela
chupasse o olho-d'agua metido a besta. E a quentura era tanta que caminhadas
no sol a pino lascavam o couro, esquentavam o juízo e humilhavam o chapéu.
Tanto era assim que, vexados, zonzos com a seca medonha, viageiros e
manja-léguas chegavam o ouvido às brechas do chão. Entre suspiros e trejeitos,
juravam escutar o olho-d'agua chorando nas entranhas da mãe-terra.
Mas
não sendo a água coisa de raiz, ninguém conseguia, nem anjo, nem arcanjo, nem
querubim, nem homem santo, nem milagreiro, nem benzedeira extrair gota de lá.
Líquido inconfundível era o pingo que escorria do olho das gentes e sulcava as
caras sofridas. Talvez os caminheiros quisessem lavar a vista empoeirada ou,
quem sabe, chorar a morte morrida e enterrada do olho-d'agua. Fatigados,
cabaças secas, tomavam a trilha de novo, molhando goelas e magoas com velhas
cantigas.
Só mesmo fórmula de raízes invisíveis, imunes à tentação dos
retirantes, encorajava os pés teimosos a ficar naquelas bandas. Acho que era
isso. Viventes do lugar sabiam que a felicidade naquele fim de mundo somente
era possível se houvesse união de todos. Então, acertos nos sacramentos do
batismo e matrimonio estreitavam alianças entre familiares, compadres,
vizinhos, perfilhados, afilhados e agregados, ficando bem entendido e acordado
que os atos religiosos selavam promessa de ajuda ou socorro, se um dia a
precisão visitasse qualquer dos obrigados.
Tais alianças dispensavam
idade, cor da pele, folha corrida, papel passado, e envolviam jagunços,
criadas, capangas, doceiras, peões, mucamas, cabras, cavalariços,
amas-de-leite, uns assumidos feito gente, outros como quase gente, tudo certo
e direitinho segundo os passos da patronagem. Assim, entrançavam graças e
engendravam crias, fincando raízes de sangue naquelas plagas. Se Deus olhava
tudo lá de cima, devia abençoar humanos, não-humanos e os quase-humanos do
rincão que, para o bem e para o mal, não eram indiferentes às suas
semelhanças. Por isso que cochichos maledicentes feito murmúrio de quartinha
vertendo água dobravam a língua reconhecendo a generosa contribuição do meu
avô ao povoamento do lugar.
Dentre as façanhas coronelícias do
manda-chuva, verve e machismo sobressaíam nas talhas que mandava fazer e
pendurar em parede de se ver, como recado a quem soubesse ler, ou, o que era
mais provável, para ele mesmo manter-se fiel aos seus princípios. Também
diziam que as raízes da macheza estavam no leite de jumenta que o amamentara
deixando marca notória: invejável compleição física acima e abaixo do umbigo,
resistência ao calor, às cavalgadas, pelejas, fadigas, e incontáveis crias em
barrigas de mulher. Então, nenhum espanto com as fanfarronices encravadas nas
talhas, mais ou menos assim:
"Só tem dois tipos de mulher, as que
nascem sem-vergonha e as que não querem morrer com ela."
Descendentes
de seus três casamentos constituíram prole numerosa, e a casa-grande abrigava
dispensa e paiol imensos. No dia a dia, compartilhavam a mesa farta não só os
familiares, mas também serviçais, afilhados, agregados e perfilhados, esses
últimos de raízes obscuras na certa, mas lealdade jamais contestada.
As
duas primeiras mulheres do avô jaziam no cemitério da fazenda, onde a copa
solene dos juazeiros estendia véu de sombras sobre o mato rasteiro que um dia
ia virar capoeira. Ali, o silêncio pregava infinita oração.
Na
casa-grande havia outros silêncios. Silêncio. De homens brancos, maduros,
enganchados entre pernas negras que mal ganhavam contornos de mulher.
Silêncio. De brancas fogosas recebendo em seus lençóis o sêmen de negros
devotos às suas senhorias. Silêncio. De varões bem concebidos desvelando
varões sem convicção. Silêncio. Do hálito morno com que a jovem mucama
umedecia o ventre da sinhazinha. Silêncio. De dedos alvíssimos escalando seios
de ébano. Silêncio em preto-e-branco aferventando suores no mesmo caldo de
cultura e, já que a natureza nunca perde tempo e muito menos a vez, também
gerando os matizes da raça do futuro.
Num excesso de virtude ou espasmo
de ironia, nenhuma atitude coronelícia deixou impressões mais vivas naquelas
bandas do que o episódio envolvendo moço enjeitado, talvez por causa de suas
origens, digo, raizes eclesiásticas. Chamavam-no de "Filho do Bispo" quando
estava manso, e de "Filho-da-Puta" se aprontava furdunço.
Era um
surdinho mestiço, meio leso, que copulava com irracionais e se esfregava no
tronco das bananeiras. Aparecera na fazenda lá se iam vinte anos, entre
almofadas e bicos de renda, num baú de folha-de-flandres. O apelido continha
pitadas de mexerico e quês de coincidência, pois o mouco viera ao mundo nove
luas após a comitiva de Sua Eminência pousar fim de semana na casa-grande.
Quiproquós com a surdez parcial do cabra até caíam na complacência das
gentes. Porém, viés de tara fora de hora, bem como masturbações explícitas
diante de visitas ou no meio de cultos religiosos foram ficando intoleráveis.
E tantas fizera o leso que um vozerio nos estamentos da comunidade soou
uníssono, exigindo castigo amparado em sabedoria proverbial.
Provavelmente, o "Filho-da-Puta" teria evitado a mutilação a frio se a
bichinha que molestara não se esvaísse em aborto fatal, levando junto outra
cria do coronel.
Tempos depois, meu ancestral surpreenderia a todos
mandando queimar na fogueira tudo quanto era talha que puxasse pelo tino nas
paredes de se ver. A começar pela maior de todas, pendurada na entrada da
casa-grande e que exibia entre dois anjos alabardeiros, em letras bem
gravadas: "Todo mal se deve cortar pela raiz."
Se o disparate não achou
explicação plausível entre as crendices do lugar, é que meu ancestral se
arrependeria da cruel ordenança imposta ao alesado.
E o episódio tanto
o enfezara que a fogueira das talhas foi só o começo. Dali em diante, proibiu
em suas terras, sob ameaça de talhar a língua fosse de quem fosse, todo
ditado, provérbio, adágio, repente, verso, improviso ou modinha pretendendo
sabedoria.
Em verdade, nenhum muxoxo sobre a proibição criou raiz de
conversa fiada entre as gentes do lugar, pois todo mundo entendeu que o "Filho
do Bispo", sobrevivendo à mutilação, deslocara o furor que sentia no lado da
frente para extravagâncias na parte de trás.
(Publicado em CONFISSÕES
DE UM ANJO DA GUARDA – Ed. Bertrand Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ)
(09 de agosto/2013) CooJornal nº 852.
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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