A história a
seguir era o roteiro de um filme em
preto-e-branco.
Tentei dar-lhe cores
literárias
Maria das Salvas, filha
caçula de João das Salvas e Juvência - casal
branco, de olhos claros e visão turva -,
crescera com a ladainha nos ouvidos, "Fica longe
dos pretos! Lembra das gêmeas, suas irmãs!".
Sendo o mundo real indiferente àquele desenhado
na cabeça das pessoas, Maria amava em segredo um
rapazinho de origem etíope, Benevides - colega
de turma e melhor aluno da escola pública
naquele subúrbio. Beirava os dezesseis,
dezessete anos. De boa índole, QI genial, não se
envolvia com igrejas de aluguel infiltradas na
escola, nem com qualquer outra droga. Em
questões de estudo, colecionava prêmios, servia
de exemplo e era referência da escola. Órfao,
Benevides dependia de uma tia solteirona.
Maria das Salvas, exuberante aos quinze
anos, superara de longe o manequim de
menina-moça. Relevos pressionando o alinhamento
do uniforme anunciavam a mulher. No verde dos
olhos, o amor vicejando, enquanto o cenho pálido
parecia exprimir um pesar que somente cedia na
presença de Benevides.
No fim do dia, os
estudantes retornavam a casa caminhando em
grupos. Ônibus rareavam. Um ou outro aluno tinha
bicicleta, de segunda, terceira mão, ou de mão a
perder de vista. Falastrões, salpicavam de
conversa fiada quiosqueiros, biroscas e
vendilhões às margens da estrada. Depois,
atravessando becos e ruelas, os grupos se
desmanchavam, de sorte que Benevides e Maria das
Salvas terminavam a caminhada quase sempre
sozinhos. Uma vez que o coração do rapaz
sintonizava com os anseios da colega, ambos
concentravam a conversa nos próprios
sentimentos, pouco importando o entorno.
Porém, até mesmo o amor não consegue imunizar as
pessoas contra instâncias do cotidiano o tempo
todo, e, lá pelas tantas, os adolescentes
derivavam para preocupações escolares, carências
domésticas, temores e esperanças da idade. Em
matéria de crença, Maria das Salvas era devota
dos anjos, e carregava santinhos na mochila. Já
o rapaz não escondia cepticismo.
Anjos
daqui, anjos dali, um dia a tia de Benevides foi
sorteada numa rifa. Prêmio: bicicleta nova em
folha. A boa senhora não sabendo de pedais, nem
equilibrar-se sobre rodas, pensou vendê-la e
reforçar o orçamento. Depois, achou melhor
presenteá-la ao sobrinho, de modo que Benevides
se viu pedalando o sonho de todo jovem daquelas
bandas.
A felicidade sobre rodas afastou
temporariamente o rapazola de suas caminhadas
com os colegas. Mas logo, logo, Benevides sentiu
falta dos olhos verdes e do ar fugidio da
mocinha, até que num benfazejo intervalo de aula
os enamorados combinaram voltar juntos na
bicicleta. Desde então, amor e tempo passaram a
correr sobre aros e rodas.
Não sendo a
inveja privilégio de ricos e abastados, a
maledicência inventou caminhos nunca percorridos
pelos jovens. E porque a malícia dispensa roda
para chegar mais depressa, conversas
desvirtuadas emprenharam os ouvidos de João das
Salvas e Juvência.
- Esse Benevides, que
traz você de bicicleta, não é aquele preto
metido a besta do outro quarteirão?
-
Pelo amor de Deus, pai, o Benevides é o melhor
aluno da escola, e ele não é besta - respondeu
Maria, prevendo confusão.
- Dizem que não
vai a nenhuma igreja; além disso, é preto! Todo
santo dia repetimos pra você se afastar de
crioulos! Já esqueceu a tragédia das suas irmãs?
- disse o pai, enfurecido.
João das
Salvas era de gênio rude. Calceteiro de oficio,
sem ganhos e emprego certos - culpava os patrões
que, segundo ele, culpavam os sindicatos, que
culpavam os fiscais, que culpavam os políticos,
que culpavam a televisão, que culpava o diabo.
Sobrevivia de biscates e recorria a cachaça das
biroscas vizinhas para aliviar suas frustrações.
O engodo na rua sempre acabava em confusão
doméstica.
Juvência ou era amarga ou era
azeda. Costurava em casa sob encomenda para
confecções de roupas. Trabalhava muito, ganhava
pouco, tinha medo de tudo.
- Menina
teimosa, não viu o que aconteceu com as suas
irmãs? - atacou a mãe.
- Não tem nada
demais, mãe, voltamos juntos da escola todo dia
na bicicleta dele.
- Menina desgraçada,
tirando sarro na bicicleta todo dia com aquele
crioulo! - esbravejou o pai. - Vou te mostrar!
E esbofeteou severamente a filha. Não
satisfeito, desatou o cinturão e surrou-a. Foi
preciso Juvência intervir, atracando-se ao
embriagado. João das Salvas gritou que preferia
matá-la a saber que andava com um crioulo sem
eira nem beira (expressão ainda usada naquele
subúrbio).
Os gritos da menina ecoaram
nas paredes, nas vigas, bateram no telhado,
vazaram goteiras, ganharam o vento, sumiram na
poeira. No tumulto, um santinho caiu da mochila,
rodopiou, enviesou e sumiu. Durante a agressão,
a mocinha invocara, "Valei-me, meu anjo da
guarda!"
Envergonhada com os hematomas da
pancadaria, faltou uma semana à escola. Quando
retornou as aulas, tinha a carne sarada, alma
purgando. Os pais justificaram as ausências com
a desculpa de uma febre, coisa comum nos
subúrbios, onde o estado é tão invisível quanto
Ele, como alguém já disse.
Difícil foi
evitar Benevides. De um lado, a atração
irresistível do amor, de outro, as ameaças
terríveis do pai. E morreria de paixão se o
motivo da pancadaria extravasasse. Nos
intervalos de aula se escondia nos banheiros. Na
saída, remanchava.
Foram-se os dias, e,
como nos quadrantes do amor, o tempo não
compartilhado faz fronteira com a eternidade,
remoer de infindáveis suposições levou o
inteligente rapazinho a tomar decisão. Deixou a
bicicleta em casa e retornou as caminhadas com
os colegas. Disse à tia que vinha chovendo muito
e a bicicleta ficava enlameada.
A mocinha
preocupou-se vendo-o a pé, no meio do grupo.
Caminharam próximos (mas não juntos) quase meia
hora, com olhares desconfiados, palavras
entrecortadas, corações aos saltos. Quando os
colegas tomaram seus rumos, Benevides falou em
tom baixo:
- Meu coração diz que
aconteceu alguma coisa ruim, me conte, Maria das
Salvas!
A jovem suspirou. Os olhos verdes
vigiando perigos à frente, enquanto suor úmido
escorria das frontes. Nuvens densas tingiam
cores de pesadelo no céu. Sentiu o coração
descompassado, pois já se aproximavam de casa e
alguém poderia vê-los. Pior: denunciá-los ao
pai. Olhou Benevides, não de todo dissimulada,
respirou fundo e invocou, "Valei-me, meu anjo da
guarda!"
Mal terminou a invocação, um
relâmpago rasgou e cerziu o céu. De surpresa, a
mocinha pegou o rapazola pelo braço e puxou-o
para dentro de rústico quiosque abandonado. Um
temporal começou a despencar. Valendo-se da
cortina formada pelo aguaceiro, Maria abraçou
Benevides pelo pescoço e disse tristemente:
- Não podemos ser amigos, meu pai me baterá,
e ele jurou me matar se souber que ainda
converso com você!
- Que loucura, nós não
fazemos nada demais... E eu te amo, é um
suplício ficar longe... Bem, tenho vaga ideia
dos motivos do seu pai, mas preciso saber a
verdade, me diz, Maria, me diz!
Benevides
seguiu argumentando com desenvoltura de adulto e
impaciência de adolescente. Maria das Salvas
encostou o rosto no peito do rapaz. É nessas
horas que a voz do sofrimento regride aos tempos
primórdios. Podia ouvir-lhe a voz do coração,
poderoso grito tribal, imune ao estrepito dos
trovões e ao chuá das enxurradas.
- Me
diz, Maria das Salvas?
Sentir-se amada
por Benevides encorajou-a de tal modo que
parecia capaz de enfrentar o próprio Dilúvio.
Mas não conteve o amargor na boca, nem dominou o
tremor das pernas sob a saia pregueada do
uniforme. Enxugando lágrimas com o dorso das
mãos, suplicou:
- Meu amor, me poupa
dessa vergonha!
- Me diz, Maria das
Salvas, me diz o motivo!?
Invocando outra
vez, "Valei-me, meu anjo da guarda!", sentiu uma
súbita carga de energia e, crendo estar sob a
proteção do seu anjo, confessou cabisbaixa:
- É por causa da sua pele, mas eu amo você
com qualquer cor, amo o que está dentro de
você... - disse, perdendo o fôlego, com a palma
da mão no peito do rapaz.
- Eu já
desconfiava! Mas não tenho raiva dele, tenho até
pena, muita pena, porque ele é vitima e carrasco
da sua ignorância, e nunca vai entender que a
pintura da nossa pele, da nossa carroceria
humana é só uma coisa química, uma tintura da
Natureza, como aprendemos nos livros, e não tem
nada a ver com a pessoa que somos ou não
somos...
- Benevides, meu amor, tudo isso
vai passar. Tenho fé! Rezo muito pro meu anjo da
guarda! Ele vai nos ajudar de alguma maneira...
E nós vamos nos amar sempre, somos almas gêmeas!
Tremendo, Maria das Salvas beijou-lhe a boca
úmida e disparou no rumo de casa. O aguaceiro
desfez as lágrimas da jovem, enquanto o seu
coração vertia outras torrentes. Benevides saiu
ao quiosque e deixou-se encharcar, pensando,
quem sabe, lavar a alma com os cristais da
chuva. Sua pele negra e bela adquiriu brilho
extraordinário sob os relâmpagos que
descosturavam o céu.
*
Anjos
conhecem de sobra as entradas, instalações,
passagens e saídas da mansão do tempo. No dia em
que João surrou Maria das Salvas, o santinho que
caiu da sua mochila enfiou-se num vento encanado
e chegou aonde tinha de chegar.
Instantaneamente, o anjo invocado adentrou as
dimensões terrenas e, invisível, presenciou a
violência paterna, bem como recuperou
antecedentes daquela família.
Apurou que
jovens negros drogados estupraram as irmãs
gêmeas num vagão de trem já se iam lá cinco
anos. Desde então, as moças moravam com parentes
no interior do país. João das Salvas mandou-as
para longe por causa dos traumas. Uma perdera a
fala, a outra engravidara. Mas, na cabeça do
rude, foram as sequelas do parto que o obrigaram
à medida extrema, já que, prematuramente, netos
trigêmeos vieram à luz conforme as leis da
genética.
*
Voltando ao dia do
temporal, quando Maria das Salvas invocou o seu
anjo da guarda sob relâmpagos formidáveis e
confessou a Benevides o motivo torpe do seu
afastamento, as coisas aconteceram mais ou menos
assim. O anjo invocado aninhou Maria sob suas
asas, desde o quiosque à casa da mocinha, e
aguardou a noite chegar.
Lá pelas tantas,
borrifou em todos os ambientes da moradia o
encanto da sonolência e dos sonhos - que
rapidamente surtiu efeito. João das Salvas se
esparramou numa poltrona, cruzou a província dos
sonhos meio tonto, até que, tonto e meio,
começou a roncar. Juvência, pensando ser efeito
da cachaça, deixou-o lá mesmo e entrou no
quarto, sob estranho torpor. Acabou num sono
pesado e entre sonhos desconexos. Maria das
Salvas, silenciosa, deitou-se ao lado da mãe e
adormeceu. Teve um sonho fantástico, em
preto-e-branco. Vira seu anjo da guarda
flutuando sobre nuvens de camélias e apontando o
horizonte, talvez o futuro. Havia muita neblina
no sonho, mas conseguira distinguir o próprio
vulto, em vestido de noiva, logo abaixo do anjo
e abraçado a Benevides.
Enquanto todos
sonhavam, o ente celeste arrancou uma pluma de
suas asas, embebeu o bico da pena em poção
manipulada noutras esferas, e foi direto à
poltrona onde João ressonava. Os tornozelos do
homem escapavam das calcas. Meticuloso, o anjo
infiltrou a poção alem da epiderme do bruto e
retornou aos páramos de onde viera.
João
acordou mal-humorado, reclamando de coceira em
ambos os tornozelos. Queixou-se de que mosquitos
o teriam picado durante a noite. Coçou-se
sem-cerimônia. Sentindo a coceira aumentar,
pediu à Juvência para esfregar algodão com
álcool nas partes afetadas.
Assustaram-se.
Em vez de vermelhidão,
viram estranha mancha violácea crescer em volta
das supostas picadas. Reagindo ao álcool, a
coceira abrandou, mas as manchas cresceram.
Evoluíram tão rápido que, pela hora do almoço, a
perna esquerda arroxeara joelho abaixo. E o
mesmo sucedeu com a outra perna logo depois do
jantar.
Um vizinho veio ver e assustou o
casal ao dizer que aquilo parecia intoxicação ou
até mesmo gangrena, e que era melhor procurarem
a emergência medica do posto de saúde local.
João das Salvas e Juvência combinaram ir ao
posto na manhã seguinte, mas demoraram a
adormecer, pois ficaram bom tempo discutindo
sobre as possíveis causas da roxidão - que nem
doía. O cansaço os venceu.
O rude
despertou cedo, levantou-se e examinou a perna.
Apavorado, gritou pela mulher. Da virilha para
baixo, a perna esquerda estava roxa. Juvência,
assustando-se com o que via, sugeriu-lhe uma
ducha fria antes de saírem.
João foi ao
banheiro, abriu o chuveiro, ensaboou-se bem
devagar, com todo o cuidado, reparando o
contraste entre a espuma branca e a perna roxa.
Não sendo a intenção dos homens formulada com a
química dos padrões celestes, estranha reação
começou a se processar.
O calceteiro
esbugalhou os olhos quando a outra perna ficou
inteiramente roxa, e também a genitália, o
ventre, o peito, os ombros, os braços, as mãos,
os dedos. E, por incrível que pudesse parecer
aos seus olhos de desespero, o corpo inteiro,
até então arroxeado, foi escurecendo. E, em
segundos que não completaram o minuto, João foi
escurecendo mais e mais, cada vez mais, até
ficar preto retinto.
De repente, a mulher
ouviu um grito que vazou pela porta do banheiro,
espalhou-se pela casa, bateu nas vigas, no teto,
atravessou goteiras, zuniu nas calhas, saltou
telhados, cruzou monturos, pulou esgotos...
Apesar do estardalhaço, Maria das Salvas
nada ouviu nem despertou, possivelmente
protegida pelo anjo. No entanto...
- Juvênciaaaaaa! Meu Deus! Corre aqui!
A
mulher, muito assustada, se aproximou da porta
do banheiro e viu alguém lá dentro.
-
Misericórdia! Quem é você?
- Maldição!
Sou eu, João, virei crioulo, negão!
- Meu
Deus! Será que isso pega?
(Publicado em CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA –
Ed. Bertrand Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ)
(RT, 02 de agosto/2013)
CooJornal nº 851.