(Publicado no Jornal do Brasil -
08-10-1989, Rio de Janeiro) Consta que na maquiagem final do
Plano Cruzado, quuando o documento ainda era segredo de Estado, coube ao
próprio presidente Sarney retirar o "R" da sigla ORTN, título publico que
balizou a economia nacional durante a ultima geração, originando-se daí a OTN,
hoje ressuscitada como BTN.
Houvesse o plano logrado êxito, o simples
apagar da letra "R" que significa "reajustável", poderia ter proporcionado ao
presidente Sarney maior glória do que todos os seus decretos e medidas
provisórias e ao cidadão Jose Sarney maior fama do que seus livros traduzidos
para o chinês e o russo.
É que a expressão "reajustável" não teria sido
extirpada somente do título público ou dos quadrantes econômicos, mas de um
universo muito maior da complexa realidade brasileira no que ela tem de mais
pungente nessa aurora dos anos 90 - o caráter mutável, transitório e
indefinido dos valores que norteiam a nossa sociedade.
De fato, parece
que uma "síndrome do reajustável" extrapolou o seu originário campus econômico
e infiltrando-se nas malhas do tecido social, atingiu o Estado, o governo, a
política, a administração pública, a iniciativa privada, os lares e o
dia-a-dia.
Mais do que isso. Parece que tal síndrome se alojou no
animus, na psique da sociedade. No seu inconsciente coletivo. O Brasil de hoje
vive sob o signo do "reajustável". Tudo se tornou elástico, flexível,
modelável, fugidio e efêmero. Desfigurou-se o conceito de precisão. A procura
da certeza e exatidão desperta pouco interesse. Vale o aproximado. Vige o mais
ou menos. Cultua-se a estimativa.
Essa nova onda ética se sobrepõe e a
tudo quer reajustar: forma, conteúdo, parâmetros, valores, pesos e medidas. No
início, a sua força motriz era o processo inflacionário auto-reajustável pela
indexação monetária. Hoje, a inflação vai cedendo lugar a um surto de
irresponsabilidade social generalizada, a um prenúncio de anomia que abala o
Estado, deturpa as empresas, amedronta as famílias e confunde o cidadão.
À medida que a síndrome se espraia, ela definha a vontade individual,
desorienta o comportamento coletivo, entorpece a moral e justiga a
juridicidade do Estado. Não vale o que está escrito. Se vale, é "reajustável".
As leis vão-se tornando meros pontos de referencia e os tribunais, monumentos
institucionais.
Na esfera política, a síndrome é arrasadora: a
Constituição tem arcabouço parlamentarista, mas se reajusta com fisiologia
presidencialista: o país se configura como Republica Federativa, mas atua como
Estado unitário: políticos reajustam-se de partido em partido e estes de
ideologia em ideologia. Vigora o "reajustável". E a Constituição e a forma de
governo já têm prazo para isso.
Por outro lado, a economia do país,
devastada por enorme defasagem fiscal e malversação de recursos, reajusta-se
nas irrefreáveis emissões monetarias, nos juríssimos da dívida pública e nos
subterrâneos da economia informal. Para a espiral inflacionária achou-se um
novo tipo de reajuste: o patamar. Mas, de patamar em patamar, a inflação segue
vilipendiando as leis da oferta e da procura e degenerando a estrutura de
preços e salários. O próximo patamar pode ser a hiperinflação declarada.
Nesse frenesi de reajustes, as atividades produtivas abandonaram as mais
elementares regras orçamentárias, enquanto as famílias aboliram o simples
orçamento doméstico. Ninguém em sã consciência sabe exatamente quanto ganha ou
despende. Bônus, índices, obrigações, moeda estrangeira servem de moeda. A
moeda mesma não serve.
Porém, é no dia a dia que a perversidade da
síndrome se potencializa. Quando o individuo comum é coagido a reajustar seus
hábitos domésticos, seu espaço de cidadania, seu direito de vida. Porque
assaltos, chacinas, sequestros, motins, saques estão agredindo, a olho nu, o
que restou de ordem e autoridade. Parece que as fronteiras da criminalidade e
da ordem se amalgamaram, se ajustam e reajustam entre si por obra de
mesquinhos interesses grupais acobertados pela corrupção e sob o lastro da
impunidade.
Esses reajustamentos mórbidos e permanentes tendem a
aniquilar a memória da sociedade, a anular a dimensão psicológica de um futuro
melhor e a condenar-nos a um presente sem inspiração, puramente maquinal.
É contra esse quadro patético que a boca das urnas poderá, nas eleições
que se avizinham emitir um feroz grito de revolta: "o governo morreu, viva o
governo", ou quem sabe: "o Estado é morto, viva o Estado".
Em MEU BRECHÓ DE TEXTOS – Ed. Imprimatur – 2012
– Rio de Janeiro/RJ)
(26 de julho/2013) RT, CooJornal nº 850
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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