01/04/2024
Ano 27 Número 1.361
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
O final da história a seguir foi escrito por famoso irlandês. Envolvido
com outros livros, nunca teve tempo de iniciá-la. Ocupei-me da metade
faltante. Num domingo estival, ao acompanhar o Sr. Woodstock na
leitura matutina do Tribune, peguei-o rastreando a seção de cartas dos
leitores. Sendo meu ofício guardar e prevenir, observei que ele demonstrara
interesse desmedido numa carta abordando certa "Clínica para Normais", situada
em Bentley Street, numero tal. Anotou os dados na agenda de bolso, e ficou
elaborando conjeturas que parecia sugar do fornilho do cachimbo, para depois
soltá-las como argolas de fumo.
O Sr. Woodstock era um solteirão bem
conservado, discreto, nobre de espírito, rico e elegante. Saía pouco, falava o
mínimo, dormia o necessário. Investidor bem-sucedido da fortuna que herdara,
desfrutava ainda de saúde invejável, apesar de haver saltado a barreira dos
setenta. Não tinha amigos. Inimigos, tampouco. Parecia satisfeito com o que
fazia e com o que não queria fazer.
Mas, neste mundo de ilusões
renovadas, ninguém escapa da maledicência. Tanto assim que, na leviandade do
cotidiano, sólidas reputações podem ser maceradas. Meu protegido sabia disso.
Chegavam aos seus ouvidos sopros capciosos de respeitáveis vizinhos ou até da
criadagem da mansão, pois, no mundo globalizado, pitadas de malícia e provas
de especiaria não se restringem ao paladar das elites. Em contrapartida, não
tendo parentes consanguíneos nem afins, o Sr. Woodstock desconhecia sabores e
dissabores do seio familiar.
Mas não era pouco, por exemplo, o que
especulavam sobre as preferências sexuais do Sr. Woodstock. Diziam que as
atribuições do mordomo da mansão, um indiano com ar misterioso, excediam as
fronteiras do ofício. E que, não obstante haver cinco barbeiros no condado, o
rico senhor preferia ser atendido semanalmente por profissional de um lugarejo
vizinho. Até aí nada demais, porém, a maledicência especulava que o tal
barbeiro pernoitava na mansão em aposento reservado aos hóspedes ilustres, e
não nas dependências destinadas à criadagem.
Murmuravam ainda sobre os
motivos que levariam meu protegido a demorar-se com as mãos no regaço da
manicure durante as tardes de quinta-feira. Nem a governanta da casa, uma
chinesa de lábios silentes para o que não era da sua conta, e de olhos
semicerrados para o que convinha enxergar, ficava imune às ferroadas do
disse-que-disse. Sopravam matinalmente que a oriental guardava algum segredo,
pois tinha o privilegio exclusivo de limpar, todas as noites, o cachimbo do
patrão.
Verdade que, ao caminhar entre alamedas dos jardins adjacentes,
o nobre cavalheiro pendia a cabeça ligeiramente para um ou outro lado, como se
quisesse ouvir os bisbilhos dos insetos, ou o despertar das florações. Porém,
seu interesse pelas vozes da natureza era mal interpretado, de modo que
burburinhos saltavam os muros da mansão, tachando-o de excêntrico,
estrambótico ou esotérico.
Voltando ao Tribune, não soube de pronto
quais motivos levaram o Sr. Woodstock ao repentino interesse pela "Clínica
para Normais". Mesmo admitindo que o prurido da curiosidade humana é
irremediável, não imaginei que simples carta de leitor alterasse o
comportamento de tão nobre cavalheiro. De fato, tão logo terminou a leitura do
jornal, ordenou ao mordomo não ser incomodado nas próximas horas, suspendeu o
almoço, cancelou o chá, instruiu sobre a frugalidade do jantar e acrescentou
que só sairia dos seus aposentos à noitinha.
Quando a noite começou a
embaçar as vidraças das janelas, a rotina traçada pela manhã em nada se
afastara do recomendado. Após o jantar, a governanta apagou as luzes da casa
no horário habitual, e todos se recolheram aos costumes.
Na manhã
seguinte, o Sr. Woodstock despertou cedo. Emprestou ao cenho ar de expectativa
e sopros de celeridade aos movimentos. Depois do café, deu ordens ao mordomo
para dispensar o chofer durante todo o dia. Surpreendentemente mandou chamar
um táxi. E rumou em direção à clínica.
A distância custou-lhe vinte e
oito libras, três quartos de hora e meia dose de impaciência. Chegando ao
lugar, ficou observando exteriores da construção. Era uma casa de estilo
normando, em centro de terreno, grandes janelas, telhado com declive
acentuado, duas chaminés, paredes externas chegadas ao bege, enquanto o
madeirame visível, dependendo da luz, oscilava entre o bordô e o escarlate. A
casa parecia residência de pessoa abastada. Estranha tabuleta no jardim
despertava curiosidade: "Clínica para Normais". Convém registrar que,
coincidência ou não, as residências vizinhas aparentavam desocupadas.
Para chegar à porta da clínica, o Sr. Woodstock precisou ultrapassar pesado
portão. Martelo e sineta de bronze reagiram ao anunciar o visitante. Em vez do
lógico retinir, as peças extraíram sons de violoncelo. Uma senhora em uniforme
de enfermeira saiu da casa, atravessou o canteiro de rosas azuis, e veio
atender. Corpo de matrona, rosto adolescente, crachá com o número um.
Após colóquio de praxe, a senhora número um abriu ferrolhos que soaram feito
oboés. No vestíbulo, uma senhora com o crachá número dois o aguardava. Corpo
de adolescente, rosto de matrona. Recebeu-o, e passaram a uma saleta de
recepção onde outra senhora uniformizada, de crachá número três, trabalhava
num computador. Enquanto o teclado conectado ao aparelho emitia sons de
flautim, o mouse desmanchava-se em miados. A senhora de crachá numero três
tinha corpo e rosto de adolescente, cabelos brancos e voz senil. Deu
boas-vindas ao cavalheiro, fez perguntas reais e arquivou as respostas em
pastas virtuais.
Numa confortável sala de espera, o Sr. Woodstock
permaneceu minutos observando o ambiente. Sobressaíam dois sofás de couro de
crocodilo e uma poltrona escavada em bloco de mármore de Carrara. Mesa de
centro com base trapezoidal e tampo de vidro triangular serviam de passatempo,
pois qualquer um era tentado a buscar inutilmente encaixes no conjunto. Uma
enfermeira anciã, estampando crachá número quatro, chegou lépida sobre um
patinete. Abriu sorriso no rosto infantil. Dentes visivelmente na primeira
dentição. Palmtop ligado, foi sucinta:
- Isto é só uma pesquisa, Sr.
Woodstock, responda por favor: quais são os três tesouros da vida e cujas
iniciais formam a palavra-chave que define o mundo?
- Mãe, Arte,
Determinação, isto e, Mad.
- Muito bem! Agora, confirme o seu nome
completo.
- Richard Woodstock III.
- Como soube da clínica?
- Através de uma carta de leitor no Tribune.
- Qual o motivo para
procurar a clínica?
- Motivos particulares.
- Julga-se normal?
- Sim.
- Está disposto a fazer donativo de cinco dígitos
exclusivamente em euros?
- Claro.
- Bem, pesquisa terminada.
Antes de passar ao consultório, o senhor vai conversar com o nosso advogado na
saleta aqui ao lado. Nosso contrato prevê isenções e responsabilidades das
partes.
- Está bem.
- A clínica tem só dez suítes e, no momento,
estão ocupadas... A fila de espera é de três anos, sendo raríssimos casos de
desistência. Está disposto a aguardar, ou prefere prescrição imediata para
cuidar-se em casa? Estou só adiantando o assunto, vai depender do seu caso, do
que disser ao médico.
- Prefiro prescrição imediata.
- Muito
bem, Sr. Woodstock, acompanhe-me à sala do advogado.
As formalidades
legais foram preenchidas em letras, tintas, cores e vias, tantas e quantas. O
advogado usava tapa-olho, lenço estampado na cabeça e gancho numa das mãos. O
Sr. Woodstock não se melindrou. Saiu dali, atravessou o corredor, acompanhado
de várias enfermeiras absolutamente idênticas à senhora de crachá número
quatro. Inclusive quanto ao número do crachá. Na porta do consultório,
tabuleta indicativa: Dr. Alfred Blendson. As enfermeiras despediram-se. Um
homem com jaleco branco, crachá e barba azuis, óculos cinzentos visivelmente
sem lentes, recebeu-o.
- Como vai, Sr. Woodstock? Li seu histórico na
internet. Conheço-o desde a gestação de sua falecida mãe. Sente-se, por favor,
e seja objetivo.
- Queria prescrição para tratamento domiciliar.
- Confirme quando fez seu último check-up.
- Há três meses.
- Estava tudo normal? Sua palavra dispensa exames e atestados, lógico, estamos
na Inglaterra.
- Estava tudo normal.
- Muito bem, pois saiba que
nossos sistemas de inoculação só funcionam em pessoas absolutamente sadias.
Óbvio que é para evitar complicações. Que tipo de enfermidade gostaria de
adquirir, orgânica ou inorgânica, ou seja, doença do corpo ou da alma?
- Isso não estava especificado no contrato.
- Contratos jurídicos
parecem menos abrangentes do que supomos. Vamos à parte médica, que é mais
especifica. Vou fazer-lhe um brief sobre casos de doenças orgânicas. Ouça com
atenção para decidir com segurança - disse o médico, retirando e colocando os
óculos sem lentes.
E explicou que, com o desenvolvimento da tecnologia
aplicada às ciências médicas e à bioquímica, a maioria das doenças
desaparecera nos chamados países do Primeiro Mundo. Por isso, era crescente o
número de pessoas - entediadas com a vida sempre saudável - que procuravam a
"Clínica para Normais" em busca de resfriados, ou alergia, gastrite,
enxaqueca, azia, dor de cabeça, terçol, cravos, espinhas - males desaparecidos
de certos quadrantes. E também que muitas pessoas queriam se sentir naturais,
humanas, e não robôs, clones, pós-humanas, indestrutíveis. Ponderou que tais
casos eram simples de resolver. Porém, explicou ainda que havia casos de
criaturas exigentes que preferiam sofrer males traiçoeiros, tipo úlcera
duodenal, pancreatite, hepatite, cardiopatia, erisipela, serpiginose,
miastenia grave e outros.
Também mencionou casos excêntricos de pessoas
desejosas de contrair doenças tropicais, tipo malaria, febre amarela, ou
dengue, mas sem sair da redoma do Primeiro Mundo. Sim, frisou bem que havia
casos de pessoas supersaudáveis mas desejosas de contrair febrões por vias
naturais, o que implicava inoculação in natura diretamente de anofelídeos
infectados. Em tais casos, a clínica importava mosquitos transmissores
comprovadamente infectados, condição que obviamente encarecia o atendimento.
Tais pacientes eram isolados em camarás especiais para evitar transtornos.
Também falou de masoquistas ansiosos por doenças incuráveis, dores
terríveis, longos períodos em fase terminal, bem como de clientes extremistas
que preferiam ataques fulminantes, mas esses últimos eram raros, e em geral
contornados com outra solução, pois a ética médica impedia procedimentos de
eutanásia ativa.
O Dr. Blendson garantiu que a "Clínica para Normais"
atuava rigorosamente nos termos da lei e oferecia comodidades de primeiro
mundo aos seus pacientes. Além disso, os clientes não precisavam sair da
Inglaterra e enfrentar horas de voo para chegar aos países onde a maioria das
doenças permanece in natura.
O Sr. Woodstock não se conteve:
-
Desculpe, mas é que tenho interesse em doenças inorgânicas ou, como o senhor
disse, doenças da alma.
- Vou explicar-lhe. A inoculação dessas doenças
é personalizada. Doenças da alma demoram para se instalar e têm maiores
custos. Há pessoas que preferem neuroses passageiras, outras querem neuroses
duradouras para enfrentar o chefe do escritório, o casamento, o pai tirânico,
a mãe superprotetora, o marido ciumento, o vizinho desaforado... Outras,
ainda, preferem fobias, ansiedade, histeria, compulsão sexual, síndrome de
pânico, processos maníacos, processos depressivos, esquizofrenia desse ou
daquele tipo etc. Depende do gosto. - E retirou os óculos sem lentes para, em
seguida, colocá-los de novo.
- Doutor, se o cliente desistir da
inoculação, há possibilidade de reversão?
- Nem sempre. O cliente deve
estar seguro da doença que quer para evitar complicações legais. Em casos de
inoculação para adquirir doença grave ou fatal, clonamos antecipadamente o
cliente ainda são, para o caso de haver imprevistos, pois medicina não é
matemática...
- Sei.
- Mas que tipo de enfermidade gostaria de
contrair?
- Bem, o caso é que minha vida é tediosa. Tudo flui no meu
entorno e dentro de mim com enorme precisão. Não tenho preocupações, angústia,
ansiedade, medos, ambição, desejos. Somente à noite, quando me deito, preciso
de...
Então, o Sr. Woodstock baixou a voz e confidenciou ao Dr.
Blendson as razões que o levaram à clínica. O médico ouviu-o atentamente, fez
varias anotações, e depois pegou um receituário com o timbre da clínica em
furta-cor.
- Não se preocupe, temos um procedimento infalível. Vou
preparar sua prescrição.
- Por favor, doutor, com todos os pormenores.
Depois de dez lentíssimos minutos - para um anjo da guarda todo-poderoso -
a consulta continuou assim:
- Prezado Sr. Woodstock, esta é uma receita
especial e infalível para provocar neurose branda, porém, progressiva. Não há
necessidade de clonar o senhor. Mas terá de seguir à risca minha orientação
durante um semestre menos um dia. Paralelamente, nada de livros, jornais,
teatro, cinema, música erudita. Coma, beba e fale o dobro do que precisa com a
sua criadagem e com os seus vizinhos. Suspenda o uísque, o vinho, o licor, o
cachimbo, as caminhadas pelos jardins, não faça visitas de cortesia, tome chá
de duas em duas horas e assista, no mínimo, oito horas seguidas de TV
diariamente. Para acelerar o tratamento, espalhe televisores pelos diversos
recintos da casa, inclusive no banheiro. Se a dose causar transtorno clínico,
reduza a posologia para dias alternados, mas não desista!
- Doutor, mas
o que farei com a maledicência?
Então, o médico, consultando suas
anotações e com total transparência na fala e no olhar, foi taxativo:
-
Revolucione os costumes! À noite, passe a dormir só com o seu anjo da guarda,
ou seja, dispense a companhia da governanta chinesa, do chofer, do barbeiro do
condado distante, da jovem manicure e do mordomo indiano, e bloqueie
mentalmente o antídoto natural contra qualquer tipo de neurose - estou me
referindo ao orgasmo, bem entendido?
- Entendi, doutor, mas como
termina o tratamento?
- Bem, isso é o mais importante! Faça o seguinte:
acompanhe a evolução do seu quadro emocional todas as manhãs, anote os sonhos
que tenha tido durante a noite, e avalie, sem pressa, o estágio maledicente da
sua língua em frente ao espelho antes de barbear-se.
- Mas, e aí,
doutor, como termina o tratamento?
- Vou chegar lá. Se sentir a língua
incontrolável contra tudo e contra todos, mesmo com os televisores da casa
desligados, o procedimento terá surtido efeito. Tão logo tenha certeza de que
a neurose se instalou, volte aqui para receber alta.
(Publicado em
CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA – Ed. Bertrand Brasil – 2008 – Rio de
Janeiro/RJ)
(Rio Total, 12 de julho/2013) CooJornal nº 848
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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