16/03/2024
Ano 27 Número 1.359
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Encontrei a
história a seguir entre as saias de uma
freira (noviça) sob minha guarda. Desempregado, Miguel perdeu o rumo. Tudo porque
embarcou no plano de demissão voluntária do
banco. No principio, a bolada parecia sonho. E
como sonhos e desejos ainda não pagam imposto,
ele e a mulher, Marta, sonharam com loja de
franchising, posto de gasolina, agência de
automóveis, importadora de vinhos, Lan House...
Na euforia que o dinheiro provoca,
subestimaram os três filhos naquela idade em que
educação e consumo geram despesas imediatas,
resultados futuros. Além disso, gastaram pesado
com restaurantes, presentes, roupas, troca de
carro, viagens, nova decoração do apartamento. O
alarme soou num confronto entre gordos extratos
de cartões de credito e o saldo bancário que
emagrecera.
Miguel só conseguiu comprar
um táxi. Os sonhos empreendedores acabaram entre
a segunda trombada e o terceiro assalto. O
dinheiro que restou do táxi acabou antes do
previsto. E a confirmar o adágio "desgraça
raramente vem sozinha", um dia Marta entrou em
casa com a boca amarga, sem batom nem retoques.
- Também fui despedida!
- Meu Deus!
Era só o que faltava! E agora? Temos de despedir
a babá e a diarista! - disse Miguel.
-
Não tem outro jeito! Eu cuido das crianças e da
casa até você arranjar emprego - encorajou
Marta.
Durante semanas, meses, Miguel
enviou o currículo para agências de empregos,
head-hunters, consultorias, seguradoras,
financeiras, bancos, imobiliárias. Não obtendo
resposta, fez promessas para os santos
protetores de negócios, rezou, acendeu velas,
jejuou, arquivou a libido.
Ou a fé era
pouca, ou porque os santos protetores tinham
muitos pedidos a atender no mercado de trabalho,
coube ao destino interferir a favor de Miguel.
Sucedeu que um carteiro desatento enfiou o
currículo do desempregado na caixa de
correspondência de uma tal "Organizações
Paraíso". Dias depois, Miguel recebeu carta
convidando-o para uma entrevista.
No
endereço, dia e horário apontados, Miguel, na
melhor estica, apresentou-se às "Organizações
Paraíso". Num prédio no centro da cidade. Não
precisou tomar elevador. Escadas rolantes
levaram-no ao terceiro andar. Mal avistou o
letreiro, apressou-se. Observou a placa
"Paraíso" em salas contíguas. Chegando à porta
certa, apertou a campainha e aguardou. Recebeu-o
não uma secretaria, mas um senhor de meia-idade,
barbas cuidadas, modos polidos, bem trajado.
- Entre, Sr. Miguel, pontualíssimo,
reconheci-o pela foto no currículo. Sou Johnson,
o representante regional das "Organizações
Paraíso".
- Bom-dia, Sr. Johnson, muito
prazer! - respondeu Miguel efusivo, sentindo-se
examinado de cima a baixo.
- Trouxe
documentos? Precisamos hoje mesmo de um
executivo como o senhor.
- Mas, e a
entrevista? - ponderou Miguel com o cacoete
bancário de que vale o escrito, lançado,
conferido, autenticado. consolidado.
- A
entrevista acabou! Faltava avaliar sua
pontualidade sua atitude, sua aparência. Está
contratado.
- Bom, trouxe meus
documentos.
- Perfeito. Comecará a
trabalhar na parte da tarde, terá o dobro do
salário de mercado, comissões por vendas,
seguros e incentivos.
- Excelente! Mas
ainda nem sei qual e o ramo do negócio!?
- O mais excitante do mundo!
- Se for
drogas, estou fora - disse Miguel, sério.
- Não, não! Nós vendemos produtos imunes a
qualquer tipo de crise, planos econômicos,
governos de direita, centro ou esquerda, tempos
de paz ou de guerra!
- Desculpe, qual é
essa maravilha?
- Sexo! - respondeu
animado o Sr. Johnson.
- Estou fora!
- Calma, não é o que está pensando. Nosso
ramo é o sexo artificial, alternativo, portátil,
independente, criativo, talvez o sexo do futuro;
temos a melhor cadeia de Sex Shop do mundo!
- Sex Shop? Sr. Johnson, estou
precisadíssimo de um emprego, mas esse ramo não
estava nos meus planos.
- Bem, o seu
currículo não falava de preconceitos. Vai
desistir?
- Hummm! Bem...— titubeou
Miguel —, pensando nas contas e nos filhos. -
Mas, mas... o que terei de fazer?
-
Dirigir a loja e atender a clientela; sei que
foi gerente de banco, tem cultura geral, fala
três idiomas, temperamento discreto, isso é
ótimo! Nossos clientes são pessoas finíssimas,
de cultura superior, renda superior, mentalidade
superior, ideal superior. Aliás, aprenda logo
nosso lema de sucesso: "O cliente sempre tem
tesão", digo, "O cliente sempre tem razão".
- Bom, e onde funciona essa loja?
- A
Shop? Ah, sim, é aqui ao lado; trabalhará
sozinho, é política da "Paraíso". Os clientes se
sentem mais à vontade com uma só pessoa
atendendo. Você se encarregará das contas, do
caixa e do movimento diário. Quanto ao mais,
controles, estoques e pedidos, nossa rede de
computadores cobre tudo. Vou aproveitar o resto
da manhã para dar-lhe instruções básicas e
mostrar nossos produtos, modelos e catálogos.
- Mas será o bastante?, não sou do ramo,
tenho ouvido que hoje em dia há grande variedade
de estímulos e preferências sexuais...
-
Bem, o ideal seria que já conhecesse os nomes
dos produtos, mas isso leva uns dias e não
podemos esperar... Porém, não se preocupe, toda
a filosofia, a política, os produtos da empresa
estão no Manual Paraíso. Ali tem tudo explicado:
artigos, instrumentos, aparelhos, medidas,
substâncias, dosagem, faixas etárias, efeitos
colaterais, dispositivos de segurança etc. Pode
ir lendo o manual quando não houver movimento de
clientes.
- Hummm! E se alguém precisar
de demonstração, montagem, desmontagem, coisas
assim. Isso me parece meio desconfortável, meio
imoral.
- Nada de imoral; temos cabina
reservada para clientes exclusivistas que só
compram sob medida. Mas, desde já, aprenda a
citação inscrita em todas as páginas do Manual
Paraíso: "A malícia está na cabeça das pessoas".
Ou seja, nossos produtos, nossos artigos são
estáticos, imóveis, não fazem nada indecente se
não forem acionados, manipulados, e a maioria
deles só reproduz esta ou aquela parte do corpo
humano..., são quase inocentes!
- Mas não
há produtos incrementados, turbinados, digo,
mais eficientes?
- Bem, o avanço
tecnológico nos obrigou, digamos, a turbinar
alguns produtos, para dar-lhes maior molejo.
vibração, atrito, flexibilidade, melhor design,
cores mais atraentes, porém, sozinhos não fazem
nada. Repito: "A malícia está na cabeça das
pessoas!"
*
Miguel iniciou-se na
nova atividade. Findo o primeiro dia, tudo
ocorreu dentro do previsível para as
características do trabalho. E assim passou a
crer que, realmente, a malicia esta na cabeça
das pessoas.
Em casa, Marta não fez cara
satisfeita quando o marido falou sobre o novo
trabalho. Com ar pesaroso, olhou várias vezes
para os filhos grudados na TV e ficou ouvindo os
argumentos de Miguel. Quando ele largou o refrão
"A malícia está na cabeça das pessoas", Marta se
convenceu. Afinal de contas, depois de tanto
tempo, Miguel conseguira emprego. E isso de
decente ou indecente - pensou - é relativo, pois
a televisão entra na casa de todo mundo com cada
baixeza, sem a menor cerimônia.
No
segundo dia, logo pela manhã, algo surpreendente
aconteceu. Atraída pela placa "Paraíso", uma
freira entrou na loja. Tinha o rosto níveo,
gestos calmos, hábito e chapéu brancos,
engomados à moda antiga, não se sabe de qual
ordem. Examinou prateleiras, vitrinas internas,
folheou catálogos. Mas a provar que fé também
sucumbe à curiosidade humana, ou que ingenuidade
é parente do engano, aproximou-se de Miguel,
melodiosa:
- Vocês têm o sexo dos anjos?
Miguel enrubesceu, balançou os braços,
arregalou os olhos e, finalmente:
- Como
disse, irmã?
- Vocês têm o sexo dos
anjos? - repetiu a freira, ligeiramente
enfática.
Miguel pensou rapidamente, não
queria desagradar a cliente nem ferir o lema
vitorioso da empresa. Muito menos ficar
desempregado outra vez. Chutou.
- Temos
sim, mas é só amostra, não é política da empresa
vender produtos que envolvam ética religiosa.
Nem está no catalogo! - disse Miguel, pensando
haver liquidado o assunto.
Porém.
- Posso ver a amostra? - insistiu a freira.
Miguel corou. Mas não seria ele, Miguel dos
Santos Limaverde, a contrariar que "O cliente
sempre tem razão", tampouco que "A malícia está
na cabeça''. E como imaginação não é artigo de
luxo para quem enfrentou meses de desemprego,
nem a inocência é convincente porque se cobre
toda de branco, uma centelha de sedução se
desprendeu:
- Por favor, senhora, entre
naquela cabina, sente-se, relaxe, em dois
minutos eu trago a amostra, será coisa rápida,
porque trabalho sozinho na loja.
-
Obrigada! - disse a freira com ar de
expectativa, e entrou na cabina.
Ele
seguiu-a um minuto depois. Cortinas fechadas,
ficaram lá um tempo impreciso, ou o tempo que
era preciso, pois já se sabe onde está a
malícia. Não deu para ver o que aconteceu na
cabina. Ambos saíram de lá meio corados, mas
aparentando satisfeitos. A freira despediu-se
rapidamente, agradeceu a atenção e estendeu a
mão. Seus olhos brilhavam.
À noite,
Miguel não quis jantar. Marta achou-o estranho.
No quarto, naquela hora em que os casais com ou
sem motivo dividem a cama em feudos invisíveis,
esgrimem contra o silêncio, e agridem com a
respiração, procurando no teto respostas que
nunca estarão ali, Marta deu um tempo. Depois,
fez aquele feminil rastreamento sem tirar os
olhos do teto. Começou e terminou perguntando ao
marido sobre o tipo de clientela da loja. Também
aconselhado pela sabedoria silenciosa do teto,
Miguel respondeu que os clientes eram
finíssimos, gente de gabarito, e exigentes. Só
não disse que estava começando a gostar do
trabalho.
Sendo as mulheres, para o bem e
para o mal, descendentes de Eva, Marta partiu
para "quem mata a cobra mostra o pau". E
insinuou um jogo de amor. Miguel foi taxativo:
- Querida, hoje, nem pensar!
Como
nessas circunstâncias, há milhares de anos, cabe
à mulher a frustração da espera, Marta pareceu
compreensiva. Achou razoável que a libido do
marido estivesse afetada. E, sem ceder um
milímetro de seus feudos na cama, adormeceram.
No dia seguinte, Miguel, arrumando-se para
trabalhar, perguntou à mulher, sem mais nem
menos:
- Querida, qual é a cor da
inocência?
- Fala serio? - devolveu
Marta.
Miguel explicou. - Se você tivesse
que responder um teste, desses de múltipla
escolha que aplicam aos candidatos a emprego,
como responderia essa questão: "A inocência é
azul, verde, preta, branca ou vermelha?"
Marta pensou menos que pouco: - Eu responderia
que a inocência é branca!
- Eu também
disse Miguel, que, em seguida, resmungou algo,
alegou pressa e saiu.
Marta continuou
achando estranho o comportamento do marido. Teve
uma idéia. Ia ver tudo de perto. Deixou as
crianças na escola, fechou a casa e foi ao
endereço das "Organizações Paraíso". Subiu as
escadas rolantes e, quando chegou ao corredor do
terceiro andar, avistou grande fila. Conferiu o
endereço e confirmou: a fila se estendia até a
loja "Paraíso". Todas as pessoas na fila eram
freiras em traje e chapéu brancos, engomados,
alvíssimos. Eram tantas que deviam ter deixado o
convento vazio. Na cabeça de Marta, pareciam
formar uma nuvem branca. Branca como a cor da
inocência. Então, aproximou-se de uma das
freiras e perguntou:
- Irmã, para que é
essa fila?
- Para ver o sexo dos anjos -
respondeu a freira, com naturalidade.
Marta agradeceu. Foi-se, mais encucada que
antes.
*
À noite, Miguel chegou
casmurro. Resmungou com as crianças. No jantar,
mal beliscou. Quando o casal se recolheu, Marta
esmiuçou a sabedoria do teto com os olhos. Não
vislumbrando, como sempre, resposta aos seus
questionamentos, armou-se de indagações e
disparou:
- Miguel, qual o artigo mais
procurado na Sex Shop?
- Hein? Humm...,
bem, é..., bem... tem sido "o sexo dos anjos".
- Posso ir lá ver?
- Você vai se
decepcionar..., estou com sono, não podemos
conversar sobre isso amanhã?
- E se
amanhã eu aparecer lá toda de branco, como uma
freirinha, na cor da inocência, vou conseguir
ver o sexo dos anjos?
- Humm..., já esta
sabendo das freiras, andou me espionando, hein?,
pois bem, fique sabendo de uma vez que fui
despedido. Vou até lá amanhã para o acerto de
contas.
- O quê?! Mal começou?
Desempregado outra vez? Que aconteceu?
-
Contrariei o lema de sucesso da empresa: "O
cliente sempre tem razão".
- Mas como é
que isso foi acontecer, logo com você que é
perfeccionista?!
- Bem, as inocentes
freiras invadiram o escritório do Sr. Johnson e
se queixaram!
- E ele?
- O Sr.
Johnson até que foi bacana, ouviu as freiras e
depois me chamou em separado. Disse que eu era
educado e criativo, mas infelizmente tinha de
dar razão às freiras, me repetindo pela enésima
vez que "0 cliente sempre tem razão".
-
Mas, afinal, do que elas se queixaram, a malícia
não está na cabeça?
- Isso mesmo,
querida, elas pensavam que o sexo dos anjos
fosse maior!
(Publicado em
CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA– Ed. Bertrand
Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ)
(05 de julho/2013) CooJornal nº 847
Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias"..
(Publicado em CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA – Ed. Bertrand
Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ)
(21 de junho/2013) CooJornal nº
845
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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