16/05/2022
Ano 25 Número 1.272
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Estou sempre desfrutando meu tempo,
embora pelo tempo seja também consumido. E alguém foge ao tempo que sempre
passa? Acho que o tempo é uma das máscaras divinas. Grande ou pequena,
microscópica ou estelar. Está em toda parte e ninguém vê.
Às vezes,
também acho que Deus criou o tempo feito um brinquedo em momento de distração.
Depois, enfastiado, largou-o por aí a perambular encolhido ou estendido, pra
cima e pra baixo, aos sopros ou a deriva, pra frente e pra trás, nem circular,
nem linear. Sem minha lupa, minha luneta e meu destilado, melhor não
aprofundar. De todo modo, descrever o lugar onde o tempo me consome é dever de
confesso e confessor.
Minha casa tem altos e baixos, lados, fundos, e
jardim na frente da simpática ruazinha que debruça seus confins e muradas
sobre o antebraço da Mata Atlântica, aos pés do Cristo Redentor, no morro do
Corcovado. No andar de cima, a exuberância do verde vaza as janelas e só falta
dizer, "Oi, me aproveitem, ainda estou por aqui!".
Nesta ruazinha entre
os bairros da Gávea e do Jardim Botânico transitam antigos amadores, bem como
novos profissionais. Tem de tudo: panfletistas, moradores, passeadores de
cachorros na coleira ou de passarinhos engaiolados, agentes de segurança
particular, cadeirantes, acompanhantes com e sem companhia, domésticas,
pichadores, carteiros, garis, desocupados, mendigos, entregadores de jornais,
de pizza, de medicamentos sem receita, e portadores de drogas leves ou
pesadas, ou pesadas de leve, de improviso. E também provedores de refeições
ligeiras, de comida a quilo, de sexo calibrado. E ainda, a pessoa mais
interessante do bairro: senhor de meia-idade que nunca foi enganado, furtado,
assaltado ou atropelado. Débora o entrevistou a pedido de revistas
estrangeiras. O cara virou celebridade de um dia para outro. E Débora fez
enorme sucesso.
Quase na esquina, duas baianas vistosas, Maria Quitéria
e Nazaré, irmãs de sangue e alma, contrariam bordão de que a vida é amarga,
fria ou insossa. Vivem cercadas de quindins, cocadas, cuscuz, bolo de aipim,
pés de moleque, fogareiros, abará, bolos de estudante. Fazem ponto ali ha
tanto tempo que o seu tabuleiro, ao menos na minha visão, se integrou ao plano
urbanístico.
Discretamente, também jogam búzios e leem as mãos de
passantes dispostos a saber o que lhes reserva o futuro. Mantenho com as irmãs
bom relacionamento. Toda sexta-feira, nas chamadas horas entre o lobo e o cão,
uma ou outra me traz um pé de moleque dentro da calcinha de cetim barato sob
remoinho de saias. Conhecendo de sobra minha timidez, e sendo intérpretes do
que as mãos revelam, tomam a iniciativa. O resto é pura adivinhação.
Voltando ao lugar onde o tempo me consome, registro que o carro de Débora
preencheu a garagem — sem utilidade havia anos. Modernizamos a casa. Mexemos
na decoração do andar de cima, trocamos carpetes, tapetes, móveis e sofás.
Promovemos meu quarto de solteiro a suíte de hóspedes. Mais uma. Reformamos e
ocupamos os aposentos anteriormente usados por meus pais.
No andar
térreo, deixamos em paz o laboratório e, ao lado, montamos um estúdio adequado
às exigências de jornalista internacional. Próximo à garagem, reformamos e
mobiliamos modernamente três pequenas suítes, sob muxoxos de Débora, que
achava extravagância proporcionar tanto conforto aos empregados domésticos.
Aliás, dois meses antes do nosso casamento, Berenice contratou uma
auxiliar para ajudá-la de modo permanente nas tarefas domésticas. Argumentou
que, depois da reforma, a casa ficara maior, e que a ajuda de empregadas
diaristas já não satisfazia, e também que os serviços dobrariam com mais um
morador, ainda mais sendo mulher e "patroa': Disse "patroa" assim mesmo,
visível, soante e entre aspas.
Prontificou-se a trazer sua irmã mais
nova, Dora, já bem treinada como diarista intermitente há anos na casa.
Acrescentou que Dora iria manter em condições permanentes e sob iguais
condições de trabalho os padrões de atendimento a que eu me acostumara em tudo
o que fosse necessário. Ou seja, despida, digo, desprovida de pudores e
preconceitos.
Em verdade, tudo seria provado e comprovado pouco a pouco
apesar dos embaraços, percalços e melindres comuns à minha timidez. Sem dúvida
que a partir do baixo-ventre e a meio metro de distância, pouco mais, pouco
menos, Dora, como em outros tempos, ainda recendia a jasmim.
(Publicado em
LIBIDO AOS PEDAÇOS– Ed. Record – 2011 – Rio de Janeiro/RJ)
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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