01/03/2024
Ano 27 Número 1.357
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
De longe, aparentava
estatura mediana. Não chegava a ser propriamente gorducho, e costumava usar
chapéu-de-coco. A meia distância, dava para ver os seus recheios distribuídos
sob o terno claro e batido, formando silhueta uniforme com a capa de chuva
apoiada nos ombros, fizesse bom ou mau tempo. De perto, sobressaíam os cabelos
ondulados, grisalhos e abundantes, e a inconfundível cara de anjo. Tinha um
sorriso perturbador redesenhando a todo instante o feitio da boca como nos
desenhos animados.
Parado e incógnito sob a pressa urbana, parecia um
desocupado qualquer na calçada da avenida rumorosa, as mãos aninhadas nos
vértices dos braços cruzados, próximo a um bueiro entre a banca de jornais e o
buquê de orelhões, digo, conjunto de cabinas com telefone público. Ambulantes
do lugar só o conheciam de vista e de oi, olá, tudo bem - sendo verdadeira a
recíproca -, porque convinha a ambos os lados discrição no que faziam. Porém,
apontavam imediatamente para o "Cara de anjo" (vamos dar nome aos bois) quando
algum transeunte lhes pedia informações que não sabiam dar.
Tendo este
mundo gente e oficio para todo gosto, o "Cara de anjo" prestava informações de
modo voluntário, talvez numa função de utilidade pública esquecida pelas
autoridades. Tinha resposta pronta para qualquer tipo de pergunta,
principalmente sobre localização de ruas, becos, praças, repartições,
monumentos, pontos de ônibus e outras miudezas do cotidiano.
Se olhar
curioso investia sobre a sua figura singular, era coisa momentânea, já que o
vaivém de mil e um rostos sucessivos e anônimos se encarregava de enxovalhar a
memória visual do abelhudo. Na passarela do cotidiano, o informante via de
tudo: abraços, beijos, apertos de mão, encontros, despedidas, reencontros,
prantos, furtos, roubos, achaques, discussões, agressões, revides, vinganças,
e até homicídios - como é próprio da natureza humana vagar entre o bem e o
mal. Mas era, no mínimo, curioso que o homenzinho jamais fosse encontrado para
testemunhar sobre ocorrências que presenciara.
Vez por outra, parentes
de pessoas desaparecidas, detetives particulares, ou policiais especializados,
rondavam as adjacências. De fato, registros oficiais davam como desaparecidas
três mil pessoas anualmente no centro da megalópole. Se um caso merecia
investigação mais a fundo nas imediações, logo o informante evaporava. Cessado
o burburinho da procura, lá estava ele de novo.
No lusco-fusco de um
cair da noite que não vai longe, chuvisco pegajoso borrava calcadas, marquises
e guarda-chuvas. Porém, o mau tempo não arredou o informante do seu posto. Lá
pelas sete, viu dois camelôs conversando com um cavalheiro no passeio que
dividia a avenida. O trio olhava em sua direção. Aos acenos dos camelôs, o
informante respondeu com um gesto de polegar. Filtrando a chuva fina, pôde
observar que o transeunte era magro, tinha o chapéu bem posto e tratava o
guarda-chuva feito bengala, sem se importar com o gotejo dos céus. Em seguida,
o cavalheiro atravessou a avenida.
- Boa-noite, disseram que o senhor
sabe informar tudo quanto é lugar nas redondezas - disse o transeunte, alçando
ligeiramente o chapéu.
- Bem, estou sempre por aqui, o que quer saber?
- respondeu e perguntou o informante, num meneio de cabeça e chapéu, esboçando
o seu estranho sorriso.
- Já perguntei a todo mundo, ninguém me leva a
serio. E franziu a testa, aparentando desânimo.
- Posso informar-lhe
sobre qualquer lugar das redondezas. Aonde quer ir? - disse o informante já
com novo desenho no feitio da boca.
- Não me tome por maluco, mas... -
O cavalheiro fez uma pausa, temeroso de ir adiante.
- Seria um
disparate julgar a sanidade de alguém só por causa de uma pergunta corriqueira
- atalhou o informante com o desenho da boca desfeito outra vez.
- Veja
bem, é que não se trata de um endereço comum. Mas, antes de tudo, preciso lhe
dizer o motivo da busca. Vou resumir, se me permite, com dois argumentos.
Primeiro: estou convencido da inutilidade da existência humana já que nascer,
viver e morrer e um ciclo que não faz sentido, pois tanto os bons quanto os
maus terminam do mesmo jeito, isto e, morremos...
- Desculpe
interromper, mas, desde o inicio dos tempos, os bons e os maus, quando partem
deste mundo, têm destinos opostos: ou vão pro Paraíso, ou vão pro Inferno,
todo mundo sabe disso - ponderou o informante.
- Aí é que está! Tenha
um pouco de paciência comigo, que passo ao segundo argumento. Acho que o
Paraíso não faz o menor sentido, é um prêmio inútil um final tedioso, vazio e
estéril, uma coisa sem perspectiva!
- Sei. Mas aonde quer chegar?
- Tenho pensado muito nisso. Talvez o Inferno, ali sim, seja o único lugar
com algum sentido depois que morremos, pois os castigos impostos aos
condenados despertariam motivação, esforço ou criatividade para suportá-los,
ou, quem sabe, até vontade de sair de lá?
- Sair do Inferno?
-
Isso mesmo, não acredito na resignação do ser humano, ninguém é capaz de
aceitar eternamente o sofrimento infernal!
- O senhor fala bonito, mas
eu não sou a pessoa que procura, só sei informar sobre endereços!
-
Pois é isso mesmo, eu quero saber onde fica a porta ou a entrada do Inferno,
talvez eu pudesse espiar do lado de fora o que se passa lá dentro...
-
Mas o senhor já esta no Inferno!—falou o informante sem perturbação.
-
Está brincando! Então me diga onde fica a porta de entrada?
- Ora, meu
senhor, o Inferno não tem porta, é o lugar mais publico e democrático que
existe, é todo esse espaço imenso ao nosso redor, esse mundo luxuriante de
maldade, hipocrisia, miséria, violência, iniquidade!
- Vou abrir o
jogo! Eu estava só lhe testando, mas agora senti que posso conversar à vontade
com o senhor, uma vez que praticamos a mesma lógica..., pois bem, então me
confirme o seguinte: se o Inferno não tem porta de entrada, é porque não deve
ter porta de saída, não é mesmo?
- Mas quem lhe disse isso? Fique
sabendo que o Inferno tem muitas saídas, apenas estão camufladas. Já vi que o
senhor não é nem um pingo louco, porém esta raciocinando de modo apressado...
- É que perdi muito tempo nessa procura.
- Esqueça o tempo, vai
recuperá-lo; há jeitos, caminhos e atalhos para chegar a qualquer lugar neste
mundo. Vou lhe mostrar com a maior satisfação uma porta de saída do Inferno
aqui pertinho. Aliás, o senhor está com os pés exatamente em cima de um
atalho!
- Acho que o senhor esta debochando, mas, olhe só, estou muito
consciente e repito que não sou louco, isto aqui é só o tampão de um esgoto,
sei lá, de um bueiro! - afirmou o sujeito, cutucando com a ponta do
guarda-chuva a alça do tampo, sem notar o estranho sorriso que se desenhou na
boca do informante.
Foi tudo tão rápido que, no lusco-fusco da
noitinha, ninguém reparou o tampo do esgoto se abrir feito alçapão, soltar
fumo oloroso a enxofre e retornar ao nível da rua num breve intervalo, porém o
suficiente para o transeunte com chapéu bem posto e guarda-chuva feito bengala
ir ao encontro do que procurava.
Às vezes, o inconsciente das pessoas
traz respostas aos seus questionamentos, sem dar a mínima para a vigília da
consciência que, em última analise, pode ser a voz do seu anjo da guarda.
(Publicado em CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA – Ed. Bertrand
Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ)
(21 de junho/2013) CooJornal nº
845
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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