16/02/2024
Ano 27 Número 1.355
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
(Esquecido na gaveta, em meados da
década de 1980, se não me falha a memória -
Madri/Espanha) A notoriedade dos matizes
espanhóis já não se restringe, outra vez, às
imolações nas "plazas de toros" ou à magia dos
pinceis de Goya, Velazquez, Sorolla. Nem se
limita ao descortínio de uma das mais ricas,
agitadas e controvertidas historias dos povos
ocidentais. Hoje, na terra dos Descobridores, o
gêiser do terror pode irromper, a qualquer
momento, em uma tranquila cafeteria, estação de
metrô ou movimentada avenida de Bilbao,
Barcelona ou Madri, tingindo de pasmo e de morte
quadro social de democráticas esperanças.
À primeira vista, nesse fenômeno tristemente
violento se entrelaçam e se confundem ideias
extremistas, fanatismos sombrios, motivos
políticos contraditórios, movimentos
separatistas, interesses regionais, supostas
ingerências internacionais de caráter
estratégico-militar, ideológico ou econômico.
Mosaico histórico-cultural através dos
séculos parece que a mãe da America delineou o
atual modelo da sua jovem democracia entre
arabescos que recendem ainda à dolorosa guerra
civil dos anos trinta e à duradoura ditadura
franquista.
O fato é que a monarquia
parlamentarista instaurada em 1978, cujo modelo
de estrutura política tem merecido a atenção do
mundo tanto pelos seus aspectos institucionais
como pela moderna concepção democrática de que
se imbuiu, vem sendo assediada por inimigos
teoricamente enigmáticos em seus objetivos, mas
terrivelmente desconcertantes na prática.
Por outro lado, sucessivos e graves
acontecimentos, nos últimos tempos, constituíram
uma escalada multiforme contra a estabilidade do
poder e das instituições vigentes: o assassínio
paulatino e calculado de dezenas de militares,
entre eles, vários oficiais generais; a renúncia
do presidente do governo Adolfo Suarez; o
assalto ao congresso durante atividade plenária
por um punhado de militares extremistas; o
sequestro de duas centenas de bancários em
Barcelona; o processo de intrigas e tensões
internas reveladas na imprensa contra o regime e
a classe política; as pressões quanto à entrada
do país em organizações poderosas como a
O.T.A.N. e a C.E.E.; o crescimento vertiginoso
da população ativa desempregada; greves
coletivas de fome em povoados da região
andaluza; a desvalorização recorde da peseta e o
látego insistente da recessão econômica.
É claro que uma crescente subversão vem tirando
proveito da situação de incerteza política e
econômica que caracterizam os momentos difíceis
por que passa a Espanha. Os que conhecem a
tradição de coragem, orgulho e fanatismo dos
povos ibéricos estão conscientes de que a paz
interna vem sendo ameaçada cada vez mais de
perto. Os pessimistas já se reportam à memória
da guerra civil para justificar uma retomada
expressiva da evasão de capitais, só comparável
em números aos meses imediatamente anteriores à
morte de Franco.
Também ganha corpo o
argumento de que a sedimentação do processo
democrático, durante todo o período de transição
entre a oligarquia franquista e o novo modelo
político, sempre encontrou resistências, veladas
ou não, no seio de camadas importantes da
administração pública, na classe burocrática, no
sistema de informações e de defesa. Seriam
resquícios do totalitarismo que permaneceram
impermeáveis ao estilo democrático de governo e
comprovadores indícios de que as raízes
franquistas restaram mais profundas e
disseminadas do que se imaginava.
De
espasmo em espasmo a crise se alonga, mas o
poder constitucional tem conseguido resistir, às
vezes de modo não muito convincente, porém sem
adotar nenhuma medida de exceção e procurando
valer-se dos recursos morais dos princípios
democráticos. O que não tem impedido críticas
acirradas no sentido de que o poder permaneceu
inibido, indeciso, omisso, ineficiente e inapto
diante de fatos tão graves como os ocorridos nos
primeiros cem dias de governo do presidente
Calvo Sotelo. Essas críticas parecem traduzir
uma tibieza do regime, transcendem o clima de
confiança e assumem forma de clamor
generalizado.
Ampliando essa ótica,
pode-se admitir que todos esses acontecimentos,
regionalismo, separatismo, dissensões, atentados
e tentativas de tomada do poder não passam de
uma versão atualizada da história espanhola de
todos os tempos. Os fatos se repetem com as
conotações próprias da época, como tem sido
durante séculos e, aliás, conforme bem definiu
Ortega y Casset: "a história da Espanha é uma
história de constantes e reiteradas marchas
atrás".
E a história demonstra que os
desentendimentos, as lutas e guerras dos povos
da península atravessam a noite milenar. Na
antiguidade, com fenícios, gregos, cartagineses,
romanos. Depois, a vez de godos, árabes,
franceses, ingleses. Cristãos e muçulmanos
bateram-se em intermitente e mútua "guerra
santa" durante oitocentos anos. Internamente,
através dos tempos, castelhanos, aragoneses,
leoneses, navarros, bascos, catalães,
asturianos, galegos, de uma ou outra forma,
entre si, isolados ou coligados, desfilaram suas
identidades sociopolíticas em movimentos de
afirmação regional ou de reivindicação do poder.
Com o mesmo rigor inscreveram-se na história
absolutista, liberais, republicanos,
monarquistas, carlistas, afonsistas, franquistas
e agora os autonomistas.
Esse caráter
hispânico revolto e contestador, arraigado nas
entranhas do tempo, na alma do povo, de geração
em geração, que consegue chegar aos nossos dias
sem arrefecer diante dos padrões de uma
sociedade moderna, consumista por excelência, de
renda per capita em torno dos 5.000 dólares, e
um fenômeno talvez só explicável nos termos da
sabedoria proverbial da sua própria, rica e
imensa cultura: "el diablo es mas diablo por
viejo que por diablo".
(Publicado em
MEU BRECHÓ DE TEXTOS – Ed. Imprimatur – 2012
– Rio de Janeiro/RJ) (Revista Rio
Total, 14 de junho/2013)
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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