16/01/2023
Ano 25 Número 1.310
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Passava do
meio-dia, quando José e o aguadeiro selaram o
acordo. Sendo negócio limpo, não exige
juramento. E entre analfabetos prescinde de
documento. Às vezes, tem menor risco a palavra
empenhada de boca do que contrato firmado em
cartório.
O trato assegurava ao aguadeiro
ficar até o pôr-do-sol com as duas meninas, na
sombra da estrebaria, perto do coqueiral. Uma
delas ensaiou choramingo quando José foi
buscá-la junto à mãe que lhe ensinava passadas
de bilros. Choramingo logo abafado pela
autoridade paterna. Na cabeça de José, o negócio
era bom para todos. E tripla vantagem as gêmeas,
pois como ainda não regravam estavam isentas de
gravidez, livravam-se de suas vergonhas e
aprendiam deveres de mulher feita.
Quando
o aguadeiro regressou, as gêmeas tinham as
bochechas cor-de-rosa, e se não era reflexo do
poente devia ser a cor do pecado, se pecado tem
cor definida, já que, no extremo oposto, a
virtude tem fama de alva, branquinha, marmórea.
Se o catecismo não diz qual e a cor do pecado, o
mistério ainda não foi desvendado, embora gente
graúda pesquise e desconfie.
Porém, são
tempos em que o comunismo vem avançando no mundo
e, como se sabe, desde a Reforma não surge
movimento que provoque tanto rebuliço na Igreja.
Tendo o comunismo se identificado com o
vermelho, e sendo esta cor a mesma da carne
humana que, sem duvida, é a parte fraca do ser,
religiosos pesquisam secretamente se aquela cor
influencia os fiéis a cometerem pecados ou se os
pecados têm outra cor definida. Para avançarem
estudos tão importantes, missionários pesquisam
nichos de pecadores ao redor do mundo.
De
longe, as gêmeas pareciam descadeiradas. De
perto: ressabiadas, descalças, metidas em seus
vestidos remendados. O rude encaminhou-as ao pai
sem dizer palavra. A um sinal de José, as filhas
não precisaram levantar o vestido para comprovar
a obrigação. Frente à autoridade paterna, maior
prova de obediência era manter a cabeça baixa.
José olhou bem as suas crias e, empinando o
queixo, mandou-as de volta a casa.
O
fornicador parecia satisfeito, mas, antes de ir
embora, fez um pedido. Quis despedir-se do
jegue. Evidência de como é difícil avaliar
emoções. José concordou, recomendando ser coisa
rápida. E, assim, homem e jumento trocaram
lambidelas, roçaduras e afagos, de modo que,
quando os últimos raios de sol resvalavam nas
palmas dos coqueiros, o aguadeiro enxugava
lágrimas com o dorso das mãos.
O
aguadeiro tinha lá suas emoções e consciência
bem demonstradas ao despedir-se do jegue.
Pensava ter agido melhor se houvesse dito a José
a verdade nua e crua, ou seja, não se deitara
com as meninas. Fizera o serviço em pé, mantendo
as meninas de quatro, feito mulas. E elas
mesmas, as meninas, nada de mulas, pois essas,
não sabendo falar, também não aprendem a mentir,
podiam jurar por tudo quanto é mais sagrado, não
se deitaram com homem algum, mantendo seus
atributos de mulher do jeito que vieram ao
mundo.
Em suma: de tanto trepar com
mulas, naqueles rincões perdidos, o aguadeiro
viciou-se em fornicações, gozos e fantasias nos
buracos de trás. O costume leva ao vício, a
volúpia ao pecado, mas, sendo o sexo desejado
acima de todas as coisas e não havendo erotismo
sem volúpia, Deus deixou o pecado ao arbítrio
dos homens, já que, autoritário e intransigente,
poderia ter decidido de outro modo, embora
esteja claro na Bíblia: "Todo aquele que se
deitar com animal certamente morrerá." Se uns
pecam mais, outros menos e não acontece castigo
de se ver, é que nestas questões também há
desiguais entre iguais.
Numa de suas
investidas, José descobrirá que as filhas
continuam virgens na fenda principal. Passada a
surpresa, negociara novamente não só a
preciosidade das meninas, mas também seus
atributos traseiros. Questão de sorte e procura,
que a oferta é permanente, tudo à boca miúda, e
tirantes os envolvidos no negócio, e os animais
da estrebaria, que, como se sabe, não falam nem
mentem, e também as lombrigas que, apesar de
terem boca com três lábios, são mudas e cegas, o
segredo ficará em circuito fechado, não chegará
às Alturas.
Maria e José se complementam.
Já vimos do que o homem é capaz. Vamos à mulher,
que carrega na barriga o vigésimo primeiro filho
de José. Virgem, Maria só chegou aos onze anos.
Não é, nunca foi santa — ainda que honesta, nos
parâmetros do arraial . Casou prenha dos gêmeos
desaparecidos, por volta dos doze, treze anos.
A natureza encarregou-se da anunciação: não
dava mais para esconder o bucho que engendrara
com José, numa noite de luar, sem feitiço nem
milagre. José mostrou-lhe a vara que ganhara dos
céus, ao nascer. Não foi preciso a vara virar
cobra para se esconder na cova de Maria. Os
dois, com pouca diferença de idade, mas
igualmente arretados, deixaram as diferenças de
lado e se entregaram às semelhanças da carne.
Naquele tempo, os missionários ainda não
pesquisavam as cores do pecado, mas quem visse
José sobre Maria, a céu aberto, sob o brilho do
luar, diria espontaneamente: o pecado é
prateado.
(Publicado em O LIVRO DOS
DEMANDAMENTOS – Ed. Bertrand Brasil – 2004 –
Rio de Janeiro/RJ)
(RT, 24 de maio/2013)
CooJornal nº 841
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|
|