16/01/2024
Ano 27 Número 1.351
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Ernesto Sabato
(1911/2011) em "O Escritor e seus fantasmas"
(Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia
Soares, 2003) reúne reflexões antológicas sobre
o seu destino de escritor. Fez de "Por que, como
e para que se escrevem ficções?" a sua temática
obsessiva e que sempre o perseguiu desde que
começou a escrever. Somente com o passar do
tempo, e sob o foco permanente de intensas
reflexões, iria concluir: "motivações obscuras
levariam um homem a escrever, séria e até
angustiadamente, sobre seres e episódios que não
pertencem ao mundo da realidade..."
Noutra reflexão notável, diz: "A literatura,
essa expressão hibrida do espírito humano que se
encontra entre a arte e o pensamento puro, entre
a fantasia e a realidade, pode deixar um
testemunho profundo deste transe e talvez seja a
única criação que pode fazê-lo". E cita Balzac
(1799/1850): "Hoje, o escritor substituiu o
padre, vestiu a clâmide dos mártires, sofre de
mil males, toma a luz de sobre o altar e a
difunde no seio dos povos; ele é príncipe, ele é
mendigo; ele consola, ele maldiz, ele ora, ele
profetiza."
Sobre o gênero romance diz...
"é como a história e como o seu protagonista, o
homem: um gênero impuro por excelência"...
"Somos imperfeitos, nosso corpo é frágil, a
carne é mortal e corruptível. Mas, por isso
mesmo, aspiramos a algo que não tenha essa
desgraçada precariedade...". "Ao erguer-se sobre
as duas patas traseiras, este estranho animal
abandona para sempre a felicidade zoológica e
inaugura a infelicidade metafísica que resulta
de sua dualidade: fome desmedida de eternidade
em um corpo miserável e mortal"... "Então
começam as perguntas: existe algo eterno além
deste mundo transitório e em perpétua mudança? E
se existe, como podemos alcançá-lo, mediante
qual intermediário, graças a que fórmula
mágica?".
A propósito dessas perguntas,
entro com as minhas impressões. Sempre achei que
escritores convivem com algum tipo de fantasma,
ou seja, o "intermediário" de que fala Sabato.
Sabe-se lá se com um, dois, três ou vários
fantasmas. Só que não são fantasmas comuns,
aqueles entes do imaginário clássico,
assombrações que vestem lençóis, arrastam
correntes, moram em casas abandonadas, surgem
por entre as nevoas dos pântanos ou das trevas
noturnas. Ao contrário, são fantasmas
familiares, raramente só visitantes, mas muitas
vezes são fantasmas de idos escritores. São
fantasmas que vigiam, cercam, protegem ou
perseguem os escritores nas horas mais
insólitas, nos momentos mais imprevisíveis. Não
importa se é noite ou pleno dia. nem se o
escritor trabalha, descansa, caminha, viaja,
perambula, vagueia, medita, dorme ou sonha.
O que realmente desejam esses estranhos,
digamos, seres? Por qual motivo precisam
manifestar-se, visíveis ou não, através de um
sopro, espasmo, uma inspiração, cutucada ou
aparição, sem a menor cerimônia, para insinuarem
uma observação, uma censura, uma frase, uma nota
musical, um verso, um poema, uma ode, um ensaio,
um conto, um haicai, uma crônica, um artigo,
parte de um romance ou até um romance inteiro?
Ao ler "O Escritor e seus fantasmas"
perfilhei, sem titubear, as abstrações de
Sabato. E sem nenhuma pretensão, muitas de suas
observações já me eram tão familiares como se eu
mesmo as tivesse escrito. Ou para ficar no tom
desta abordagem, era como se fantasmas comuns
nos visitassem: a mim, aprendiz de escritor, e
ao notável escritor argentino. Mais tarde,
outras experiências vividas com a Literatura
fizeram-me crer que os escritores não só
convivem com fantasmas, mas também eles mesmos
são uma especie ou família de fantasmas. Claro
que fantasmas ainda impuros, terrenos,
sofredores, infelizes, inconformados com a sua
finitude temporal, desprovidos de meios
conscientes para assimilar uma improvável
transcendência imaterial, esotérica, cósmica ou
qual nome queiramos dar a essa questionável
sublimidade.
Quando eu estava organizando
"Meu Brecho de Textos" - coletânea de escritos
pinçados dos meus romances, contos, artigos,
ensaios, poemas, fábulas, enfim, de textos que
publiquei e de outros que não publiquei porque
os guardei, ou porque os perdi, e que por
qualquer razão os reencontrei - tão logo relia
uma frase, um aforismo, um epigrama, um verso,
vinha-me a memória como as palavras foram parar
ali e daquela forma associadas. Visitava-me uma
espécie de visagem daqueles edifícios literários
em que as palavras serviram de tijolos da
construção. Mas que argamassa mágica uniu os
tijolos com tal precisão? Que tipo de inspiração
arranjou e cimentou aqueles tijolos de forma a
dar-lhes o senso comum de obra literária? Se
admitirmos a inquietude permanente que lateja no
íntimo do escritor como sua matéria prima
indispensável, poderemos pensar que o seu
universo - caos de emoções, trevas, vícios,
paixões e flagelos da alma - só é alcançável (e
manejável) com a intervenção de seus fantasmas.
Nesse arcabouço de ideias e a propósito de
alguns livros que publiquei, penso que minhas
"Memórias da Liberdade" foram arrumadas por
seres fantásticos dos igapós amazônicos e, mais
tarde, por fantasmas de jangadeiros que eu
costumava encontrar nas praias cearenses
beijadas por ondas de esmeralda. E que os contos
em "O Clube dos feios" foram soprados por
fantasmas imersos no fog londrino quando
periodicamente para ali eu viajava a trabalho,
mas sempre conseguindo escapulir por algumas
horas a fim de me entreter com os sussurros
marginais das travessas nevoentas da antiga
Albion. E que o romance "O Livro dos
Desmandamentos" me foi soprado por fantasmas de
meus ancestrais, coronéis, majores, repentistas,
cangaceiros, matutos, mulheres rueiras ou
beatas, em versões a perder de vista na secura
da caatinga. E que as "Confissões de um anjo da
guarda" me foram sopradas por fantasmas da
Renascença que me acolheram nos meus tempos de
estudante na Itália, onde, não raro, me perdia
nas praças, galerias, igrejas, muralhas e ruínas
milenares. E que o romance "Libido aos pedaços"
me foi sugerido por fantasmas, de certa forma
meus contemporâneos e familiares, quando
trabalhei como datilografo num sanatório
psiquiátrico durante a minha adolescência.
Deixo "O Livro dos Ciúmes" para este fecho
porque outros fantasmas já haviam profetizado
que tal livro iria aparecer nesta Revista. Bem,
um resumo do livro em si bemol maior. Tudo
começou quando, numa noite invernal, um velho
escritor espanhol foi despertado por estranho
vozerio vindo de sua biblioteca. O ancião
levantou-se e foi verificar o que se passava, e
teve a mais incrível das surpresas. Estavam ali
reunidos todos os personagens dos livros que
escrevera. Discutiam calorosamente, em forma de
assembléia, quem sopraria as histórias para a
próxima obra do velho escritor. Depois da
discussão, decidiram: que o tema da obra seria o
ciúme; que o titulo seria "O Livro dos Ciúmes" e
composto de doze histórias; que tempo, lugar,
personagens, indumentárias, perfis psicológicos
e biotipos seriam escolhidos exclusivamente pelo
narrador, aliás, narradora, a Musa dos Ciúmes,
que também comparecera à fantástica reunião; que
as histórias seriam ao estilo das "Mil e uma
noites" e sempre encadeadas pela frase "no dia
seguinte, a musa me soprou esta história que
adaptei aos tempos e quadrantes da vez. Ah, sim,
faltou dizer que a Musa dos Ciúmes era uma
belíssima cigana, de nome familiar, "Lu", e que
falava com forte sotaque andaluz (pg. 23 do
Livro dos Ciúmes).
(Publicado em
REVISTA ANDALUZ - Poesia, 2012)
(17 de maio/2013)
CooJornal nº 840
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro28@gmail.com
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