01/10/2023
Ano 26 Número 1.337
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Autor perfeccionista rasgou um manuscrito em
oitocentos pedaços e atirou-os pela janela. O
anjo do vento juntou seiscentos deles e os
enfiou entre minhas plumas, exigindo história
completa. A duras penas, montei o texto a
seguir.
Peterson: simpático, atraente às
mulheres, rico, de boa formação, têmpera
domável. Mas como nada é perfeito, nascera sob
estrela desditosa. Sua triste sorte, para suprir
expressão que os supersticiosos evitam a todo
custo, culminara em raríssima cardiopatia que o
levou à invalidez.
Tangendo os cinquenta,
quando o homem reúne vigor calculado e
experiência de fatos e feitos, podendo ser o
sonho de mulheres mal-amadas e pesadelo de
maridos ciumentos, Peterson raramente saía dos
confins domésticos. Comedido de movimentos,
caminhava devagar e só fazia exercícios
levíssimos. Excessos de qualquer natureza não
lhe eram permitidos, excluindo-se o coquetel
diário de medicamentos e o passeio de
microcâmaras enfiadas no peito para estudos
cardiológicos. A vida de Peterson se resumia em
fazer e desfazer o tempo.
Ciente de que a
armadura do tempo precisa de pelo menos algum
estofo, Peterson lia clássicos selecionados e
navegava na internet, sempre monitorado pela
mulher. Também ouvia música erudita, temas
escolhidos e suaves, variações tolhidas.
Televisão, nem pensar! Pela manhã, passeava
discretamente pelos jardins da casa. Depois,
ficava aguardando o próximo horário de ingerir
remédios.
Médicos recomendaram-lhe
estimular processos criativos, desde que
evitasse emoções e esforços. Peterson tentara,
mas sua vocação era construir. Arte por arte,
fora virtuoso tocador de obras. Engenheiro
civil, da ponta dos dedos à medula. Tanto assim
que, antes da tormenta cardiológica, se sentia
realizado em canteiros de obras, regendo
conjuntos de bate-estacas, gruas, serras,
tornos, empilhadeiras, soldadoras, e sentindo
cheiro de cimento, argamassa, cola, tinta, suor
de operários, lidando com mestres-de-obras mais
sabidos do que mestres.
Porém,
imprevistos do cotidiano confirmariam a má
estrela do meu custodiado. Tinha respeitável
currículo de acidentes do trabalho: quedas em
vãos de monta-cargas, queimaduras com maçaricos
e pára-raios, marcas e cicatrizes no corpo
deixadas por tijolos e ferramentas despencados a
céu aberto.
Anita: bela mulher,
ex-modelo, louríssima natural, com um pedacinho
do céu nos olhos e a perdição abaixo do umbigo.
Beirando os trinta e cinco. Filha única de
milionários, estudara medicina graças ao
preconceito familiar contra passarelas e trajes
ousados. Fora pediatra uns tempos, mas se
enfastiou de crianças e, principalmente, dos
pais da clientela. De espírito buliçoso,
acostumada com o fausto dos que nascem ricos,
tanto detestava pieguices do lar quanto amava os
prazeres mundanos.
Na verdade, Anita não
demonstrava anseios, se é que os tinha, para
dedicar-se a um mester, a uma causa ou
obrigação. Projetos de trabalho e de realização
pessoal que franqueassem suas emoções a
terceiros não a seduziam. Apreciava a arena da
frivolidade, as touradas do consumo, o ir-e-vir
da moda, a varinha mágica do cartão de crédito e
a inconfidência enganosa dos telefones
celulares. Arisca, pescava tudo num relance:
nomes próprios e impróprios em colunas sociais,
conversas da mesa vizinha em restaurantes,
novidades falsificadas em vitrinas ou em trajes
das concorrentes - ou seja, toda mulher.
Cuidados paternos levaram-na a psicólogos
durante a adolescência. Especialistas renomados
resumiram: "... a moça é inteligente e não
apresenta anormalidades..., testes indicaram
que, pelas facilidades que tem na vida, ainda
não surgiu algo que lhe desperte ardente
interesse, embora... (e medicina não é
matemática...), um dia a situação possa
mudar..., mas não podemos afirmar o que será,
quando, e como...
Por essas friezas do
destino, Anita conheceu Peterson numa estação de
inverno na Suíça. Atraíram-se, passaram dos
esquis a lareiras e, logo, ao chocolate entre
lençóis. Peterson, também rico, não tinha
preocupações com o presente ou futuro.
Trabalhava numa das empresas construtoras do
pai.
Sendo o dinheiro mestre em criar
atalhos ao destino, Anita e Peterson casaram-se
na estação seguinte. Apesar de formarem belo
casal, não conseguiram procriar. Exames
rigorosos acusaram restrições genéticas em
ambos. Aconselhados a tentar métodos modernos de
inseminação, desaprovaram os engenhos.
O
estilo de vida com temporadas em balneários
famosos e ilhas paradisíacas compensou
temporariamente a ausência de filhos e criou
notável companheirismo entre os dois. De fato, a
união ficaria definitivamente selada quando
Peterson, ao subir uma escadaria, sentiu-se mal
e foi internado numa clínica de urgências.
A principio parecia caso sem importância.
Depois, e infelizmente, os melhores
cardiologistas diagnosticaram rara e progressiva
cardiopatia.
Desde então, Anita mudou. A
doença do marido revelou a si mesma outra mulher
- sem anseios guardados nem desejos reprimidos.
Abriu-se como uma concha tocada por
cavalo-marinho no fundo do mar. Cuidar de
Peterson tornou-se o seu único e real interesse
no mundo. Mais que isso: explícita obsessão.
Peterson passou a ter, sem nenhum exagero, dois
anjos da guarda.
Mester de anjo da guarda
não é fácil, ou seja, ficar de olho o tempo todo
e com total exclusividade sobre alguém, sai
plantão entra plantão. Se o custodiado tem gênio
difícil, personalidade extravagante, paixões,
repentes violentos, é ainda pior. Não era o caso
de Peterson. Em contrapartida, Anita passou de
obsessiva a obsessora. Anotava os movimentos de
Peterson numa prancheta, media-lhes tempo,
direção, frequência, intensidade e tudo aquilo
que satisfizesse o seu furor obsessivo. Gravava
os silêncios, rumores e falas do marido.
Acompanhava-lhe o biorritmo, ininterruptamente.
Filmava-o desperto e no sono. Conhecia-lhe a
epiderme de modo cartográfico.
No começo,
Peterson discordou dos exageros, depois foi
cedendo, aceitando e, por fim, virou objeto,
brinquedo - no jargão popular. O obsesso à mercê
da obsessora. Anita acompanhava-o até mesmo ao
banheiro. Conhecendo-se as dimensões dos
banheiros, mesmo os dos ricos, dá para imaginar
o acanhamento de anjos da guarda juntos com seus
custodiados nesses ambientes.
Dentre as
excentricidades de Anita, sobressaia o fato de
querer a todo custo assumir o papel de anjo da
guarda de Peterson, atitude que provocou a
deserção do seu próprio anjo da guarda (um
noviço medroso). Não raro, a obsessora vestia
trajes de arcanjo celeste encomendados ao
costureiro da família. Espadim na cinta, dizia
ao marido:
- Que seria de você sem mim,
exclusiva e totalmente sua, dia e noite, mais
que um anjo da guarda?
Peterson
respondia, bem-humorado:
- Já teria
subido aos céus, querida e, provavelmente,
deixado você livre para ser anjo da guarda de
alguém merecedor da sua exclusividade...
Anita replicava com expressão obsessiva:
- Isso nunca! Vou aonde quer que você vá!
*
Numa tarde preguiçosa, como
acontece aos que apreciam as coisas boas do
mundo sem renegar origens e hábitos, o casal
fazia tal sorte de movimentos na cama que tive
de verificar se os batimentos cardíacos do meu
custodiado correspondiam às expectativas da
medicina do céu e da terra.
Invisível, me
enfiei sob os lençóis. Anita, com o sexto
sentido próprio das mulheres, intuiu que o
marido estava literalmente em maus lençóis. De
fato, Peterson impressionou-se além da conta ao
imaginar que copulava não com Anita vestida de
arcanjo celeste, mas com o seu anjo da guarda de
verdade.
Relâmpago emocional rasgou-lhe o
peito. A boca ameaçou trovões que não
explodiram, mas nuvens negras lhe vendaram os
olhos. Fim glorioso para machistas, vergonhoso
para anjos da guarda. Fiquei imóvel. O anjo da
guarda de Anita (o desertor) viu tudo de longe.
Sendo praxe dos anjos não interferir no coração
de seus custodiados, fiquei à espera do gran
finale, já que as desgraças humanas costumam
invariavelmente chamar outras. É o que dizem.
Ao constatar que Peterson cruzara a ponte
sem volta, Anita tentou ressuscitá-lo com
descargas elétricas, fortes massagens no tórax e
respiração boca-a-boca. Não conseguiu.
Descontrolada, soltou um grito terrível.
Toda obsessão é demoníaca.
Possessa,
arrancou da cinta o espadim de arcanjo, respirou
fundo e, com uma força descomunal, enfiou-o no
peito até o cabo da arma tocar os seios. Junto
com o gêiser rubro, um vulto saiu-lhe do corpo
vazado e foi juntar-se a Peterson no meio da
travessia.
(Em "Confissões de um Anjo da
Guarda", 2008, Ed. Bertrand Brasil, Rio de
Janeiro)
(12 de abril/2013)
RT,
CooJornal nº 835.
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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