16/12/2021
Ano 24 Número 1.252
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO
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"Tragam o homem letrado a minha
presença", disse o ditador. E assim foi feito."
"Senhor ditador, sou inocente", ponderou o prisioneiro. "Nada mais fiz do que
ler livros, escrever ensaios e historietas. Ao que me consta isso não
constitui crime algum", ponderou ainda o prisioneiro. "Mentira-a-a-a!",
vociferou o ditador, aduzindo furioso: "Neste país, o ato de ler e escrever
d'agora em diante constitui crime, o senhor é um criminoso".
"Mas senhor ditador", tentou contemporizar o prisioneiro... "acho que fiz algo
construtivo. Deixei registrados pensamentos e ideias de nossa época. Servirão
para os nossos descendentes. Os homens vivem da experiência acumulada por
outras homens e de seus próprios ensaios e erros. Essas experiências são
arranjadas, permutadas, combinadas e quando contrariadas, um dia, se
transformam em progresso, por isso progresso e liberdade caminham juntos."
Porém o ditador foi irredutível: "Errado, tudo errado, você é criminoso. No
meu governo não se escreverá nem se lerá nada novo. E todos os homens letrados
serão submetidos ao Processo de Leitura Regressiva, cujo projeto de lei ainda
tramita no Congresso" - e fez um risinho de deboche - "mas que eu acabo de
aprovar. Pronto. Ei-lo. E você será o primeiro sentenciado à leitura
regressiva. Você será o primeiro leitor regressivo", finalizou com visível
espuma nos semiângulos da boca.
"De qualquer modo, muito obrigado", agradeceu passivamente o prisioneiro,
agora menos angustiado ao saber que a pena implicaria leitura. "Pelo menos,
isso", pensou.
Então, durante cinco anos, o prisioneiro leu todos os livros de nível médio
que havia no país. Como era homem de cultura superior, naturalmente que se
sentiu enfraquecido ao tentar potencializar o raciocínio. Mas, findo o
período, foi chamado à presença do ditador. Sumariamente, o déspota sentenciou
que o prisioneiro passaria mais cinco anos lendo somente livros do curso
primário. E foi isso o que realmente sucedeu.
Cinco anos depois, o ditador convocou o prisioneiro e deu-lhe sentença final:
mais cinco anos de leitura regressiva. No novo período, o prisioneiro leria
exclusivamente a cartilha de alfabetização que havia utilizada durante sua
infância e que os serviços secretos do governo ditatorial confiscaram numa
noite longínqua.
O cérebro do prisioneiro parecia definhar. Mal conseguia expressar-se para
satisfazer as exigências elementares do cotidiano. A fiel memória salvara-o do
naufrágio total, mas ele sabia que não poderia aguentar muito tempo ainda. E
definhava. E decaía.
Cinco anos mais tarde, o ditador, já de cabeça branca mas sempre empinada,
requisitou o prisioneiro a sua presença e perguntou-lhe como se sentia. O
prisioneiro respondeu sofregamente: "Eu vi a u-va." "Vo-vô viu o pás-sa-ro." "A
a-ve vo-a." "O o-vo é da a-ve."
"Muito bem, extraordinariamente bem", disse o ditador, e aparentando
contentamento ditatorial, acrescentou: "O Processo de Leitura Regressiva
funcionou! A sua cabeça servirá para estudos nos laboratórios do governo."
Chamou os guardas e sentenciou solene: "Decapitem-no!"
E repetiu: "De-ca-pi-tem-no!" Os guardas olharam atentamente para o
prisioneiro e parvamente para o ditador. Finalmente, exclamaram surpresos:
"Senhor ditador, perdoai-nos a irreverência, mas este homem já não tem cabeça!
Como vê, o corpo do prisioneiro só vai até o pescoço."
"Fez-se um silencio sideral como era de se imaginar num país reprimido como
aquele. Por fim, o ditador berrou: "Guardas, seus idiotas, minha intenção não
era decapitá-lo durante o Processo de Leitura Regressiva, mas transformá-lo
primeiramente num aliado, para depois traí-lo e liquidá-lo, como se faz em
toda ditadura de respeito. Por que vocês o decapitaram?"
Os guardas responderam que não haviam feito nada daquilo e que o Processo de
Leitura Regressiva é que devia ter decapitado o homem letrado.
Nesse ínterim, o prisioneiro tirou do albornoz alguma coisa arredondada; algo
parecido com uma cabeça. Sim, era sua própria cabeça. Segurou-a firme com as
duas mãos, virando-a de frente para o ditador. De repente, sucedeu algo
extraordinário: a cabeça falou. E disse: "Ditador, com o exercício da leitura
regressiva, vi que a cabeça já nada valia, por isso arranquei-a do corpo para
presenteá-la a alguém que a merecesse. E também por isso é que estou lhe
presenteando esta cabeça oca." E finalizou com a singeleza dos justos:
"Dou-lha integralmente." "Você esta louco?", esbravejou o ditador, nessa
altura, já na dúvida sobre qual cabeça ali periclitava, mas se refazendo
continuou bradando furiosamente: "Sua cabeça não lhe pertencia, tudo neste
pais pertence a mim..." E se recompondo, aduziu: "Você não pode presentear o
que não lhe pertence." E acrescentou furibundo: "Isso é revolucionário, é
incendiário, é subversivo!"
Nesse instante, ouviu-se um grande trovão, embora o sol pairasse solitário na
imensidão azul. Não havia nenhuma nuvem em todo o firmamento. Aquilo soara
muito estranho. Anos e anos sob repressão, já quase ninguém se lembrava da voz
do trovão. E também só raramente alguma nuvem conseguia transpor as fronteiras
do país. Por isso, os guardas se perturbaram. O ditador ficou procurando a
origem do trovão. Nisso, um outro trovão ainda mais forte ribombou. E outro. E
outro mais. Então a terra tremeu e tremeu. O ditador e seus guardas ficaram
desarvorados com aquilo. Só o prisioneiro permanecia impassível segurando a
cabeça um pouco acima de sua cintura. E outra vez, a cabeça falou de modo
extraordinário:
"Senhores, o Processo de Leitura Regressiva falhou; qual tudo em uma ditadura,
seu sucesso foi apenas aparente e temporário. Esses trovões que escutais são
os fonemas reprimidos de todas as palavras que li durante meu tempo na prisão
e potencializados pelos sons das palavras que pensei todas as noites e todos
os dias desde que aprendi a ler e a escrever. Agora, ecoam assim, aos
borbotões, aos trovões; desimpedem-se, libertam-se, espoucam livres. Esse
ribombar que faz tremer o céu e a terra, e empalidecer vossos rostos covardes
é somente o soluço da liberdade. Um soluço de contentamento. Nenhum ditador
conseguirá se apossar inteiramente de cabeça alguma que tenha aprendido a ler,
escrever e expressar-se livremente. A palavra livre é mais poderosa do que
todas as ditaduras juntas." E a terra tremeu e tremeu. E tremeu ainda. A noite
escondeu o dia e o dia desvelou a noite. E foi assim que aquela tirania se
desmantelou em milhares de pedaços diante da formidável potência da palavra
livre.
Testemunhas dizem que o ditador e seus asseclas findaram ali mesmo, segurando
as próprias cabeças, na altura das orelhas, como se tentassem impedir a
passagem do turbilhão de palavras livres.
As mesmas testemunhas dizem que a cabeça do homem letrado vive agora no meio
daquelas nuvens lá no alto. De vez em quando ela mesma é uma nuvem que se faz
e desfaz em milhares de cabeças deixando o céu encarneirado. Também dizem que
vez ou outra a cabeça começa a falar em meio aos trovões, durante algum
temporal. E que dos seus olhos chuviscam gotículas de prata. As mesmas
testemunhas dizem que, na terra úmida, não raramente, brotam palavras e textos
com fulcros de luz.
Com todas essas experiências acumuladas e retransmitidas, os descendentes
daquelas testemunhas costumam dizer que o odor inconfundível de terra molhada
pelas primeiras chuvas - em qualquer parte do mundo - invoca uma razão
sublime: o homem letrado está chorando. Chorando por todos os homens que ainda
não podem, por este ou aquele motivo, ler e escrever livremente.
(Em "O Clube
dos Feios e outras histórias extraordinárias" - 1994
- Ed. Artes & Contos - Rio de Janeiro) -
(No idioma Italiano, na Revista Literária "L'lmmaginazione",
trad. de Adelina Alleti, 1995, Lecce)
RT, 22 de março/2013
CooJornal nº 832
Carlos Trigueiro é escritor
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
carlostrigueiro@globo.com
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