16/11/2014
Ano 24 Número 1.248
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO
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Um industrial norte-americano,
fabricante de cadeiras-elétricas para penas capitais, queixava-se da recessão
no seu país a um consultor de empresas, do que resultou a anedota macabra:
- Exporte.
- Não ha mercado externo; poucos países aplicam hoje penas capitais.
- Tente o Brasil, lá os índices de criminalidade são escalares.
- Não dá, a Constituição brasileira é moderna, não prevê pena de morte.
- E daí? Eles podem mudar a Constituição! Brasileiro quando quer muda tudo: de
mulher, de partido, de regime político, de ministério, de religião, de
moeda...
- Já pensei nisso, mas leve em conta que fabrico cadeiras-elétricas e, a
rigor, se eles mudassem a Constituição nesse sentido, precisariam de um
projeto para arquibancadas...
O humor é negro. Mas a realidade é ainda pior. Nunca os espaços dos jornais
brasileiros se abriram tanto a esmiuçar temas de violência como agora. Parece
que sopra uma espiral de sangue nos nossos grandes centros urbanos. Uma
espécie de tornado do asfalto guiado por mãos humanas. Paralelamente,
assiste-se ao desmoronamento dos credos de proteção à cidadania. A ação de
polícia tornou-se virtualidade diante do realismo criminal.
Tudo isso à vista de todos: autoridades, partidos políticos, sindicatos,
elites, cidadão-comum e, obviamente, dos criminosos. Aquela imagem do país de
povo bonachão e carnavalesco foi trocada por retrato de criminalidade
violenta. Essa esquálida cara nova do Brasil assombra a memória nacional e
estarrece o reconhecimento internacional.
Mas tal proporção de violência não se instalou abrupta nem linearmente.
Durante toda esta última geração, a textura da sociedade brasileira veio sendo
macerada por violência multiforme, ostensiva ou insidiosa. Não se trata de
crise. Mas de síndrome fermentada no enfraquecimento dos valores sociais, na
deterioração do sistema de regras, na subversão da moral e perversão dos
costumes, na precedência das arbitrariedades institucionais durante a
hegemonia militar.
Urdiu-se um quadro de anomia em que a ética política se rendeu aos carcinomas
da ilicitude e sob crostas de impunidade. A certeza da impunidade estimula o
desregramento. O exemplo do desregramento instiga uma violência comportamental
entre espasmos de compulsão e suspiros de permissividade. A sociedade está
enferma. E a sua doença se agravou por falta de perspectiva coletiva, ao ponto
de impor-se a si mesma, sob o jugo de falsas elites, a miseralização das
classes médias como catarse nacional.
Identificamos ao menos três fatores principais que favoreceram a inoculação da
violência nas células da sociedade: o militarismo, o economismo e o
politiquismo.
MILITARISMO - Dispensa apresentação, já que a chamada "noite institucional",
ao engolfar o país, também o impeliu a brutal violação dos direitos humanos.
Porém, não é pelo fato de ainda estarmos exumando "desaparecidos" nas grotas
do Araguaia ou nos rincões dos subúrbios que estigmas do militarismo reacendem
nos nossos dias.
É porque lapsos de barbárie ditatorial não se apagam da psique da sociedade
num lampejo mágico. Desnudar é preciso. Escavar a consciência coletiva. Ver
dentro e por trás. No Brasii, o militarismo vigiu uma geração. Nessa geração
vingou uma cultura. A cultura do medo. E o medo por si só já é capaz de
engendrar reações violentas.
Nas sociedades carentes de regras estáveis e justas como a nossa, a violência
tende a ser bipolarizada: por parte do acossado pelas vis circunstâncias, a
fim de defender a sobrevivência e, por parte do acuador, para preservar o
status de truculenta preponderância.
ECONOMISMO - Chamamos de economismo a ação tirânica da técnico-burocracia
gerada pelo militarismo sobre os agentes econômicos e as leis de mercado. O
modelo esgotou-se e seus resultados se esfumaram, mas o economismo atravessou
essa "transição" interminável e persiste. Suas aberrações cristalizaram-se. A
indexação da economia indefinidamente passou de quebra-cabeças a quebra-orçamentos.
Públicos ou privados. Esse economismo que teima em estar aí não assimilou
sequer as mudanças ocorridas no país e no mundo. E a periculosidade do
economismo consiste na sua programática mutável, no seu arsenal de
softwares experimentais de violência econômica. Com o país de cobaia.
Não se viu neste século tanta arbitrariedade no campo econômico como a que se
cometeu no Brasil nos últimos tempos sob a égide do economismo. Nem nos
desastres da Alemanha hiperinflacionária em 1923 e no segundo pós-guerra
arvorou-se tanto.
De fato, impôs-se uma violência econômica do Estado sobre o individuo, as
famílias e empresas, sem precedentes. Empréstimos compulsórios, troca-troca de
padrão monetário, corte e recorte de zeros inflacionários, proliferação de
indexadores, congelamento e descongelamento de preços e salários, confisco de
depósitos em conta corrente, sequestro de contas de poupança, política de
juríssimos permanentes, e tudo quanto não se vê nas economias civilizadas.
Não pode existir cidadania pacífica convivendo com uma inflação acima de 20%
mensais. Isso é violência diuturna. Agride a caminho do trabalho, quando se
está trabalhando, estudando, comendo, brincando, amando, dormindo. E a essa
instabilidade, a essa insegurançaa, a essa violência é que reage outra
violência qualquer.
Tal descalabro evidencia o desastre da economia nacional. Mas não há ninguém
na cadeia por isso. Enquanto os tribunais da História aguardam o julgamento do
economismo, o mesmo não ocorre com a psique da sociedade. Essa já transborda
de aflições e recalques, não consegue mais reprimir violações permanentes. Em
parte, isso explica o que vem acontecendo nos grandes centros urbanos do país.
Segmentos mais vulneráveis e malformados da sociedade passaram de violentados
a violentadores.
POLITIQUISMO - Em tese é a politicagem, politiquice, politicaria ou
politicalha como registra depreciativamente o Dicionário do Aurélio. Num país
das dimensões do Brasil, com enorme população carente, tantas riquezas a
explorar, tanto solo pra produzir, tantas prioridades pra resolver e
potencialides pra consumar, o politiquismo não é só politicagem. É
manifestação metastática no seio da democracia. Isso é uma violência contra as
conquistas da sociedade.
Por causa do politiquismo, um dos maiores países do mundo não tem projeto
nacional. Não sabe pra onde vai. E desprovida de perspectiva coletiva, a nação
baila sem rumo. Não se consegue fazer um acordo, uma união, um pacto entre os
segmentos representativos da sociedade como um todo para soerguer o país,
reorganizar o estado, reestimular a nação. Prepondera a politiquice. Dos
feudos, das oligarquias regionais, dos interesses localizados, da mesquinharia
imediatista. Prevalece um imobilismo político diante da realidade em
transmutação. E isso e uma violência contra os anseios da sociedade.
(Publicado no Jornal
do Brasil - 07.01.1993 - Rio de Janeiro)
RT, 15 de março/2013
CooJornal nº 831
Carlos Trigueiro é escritor
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2006), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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