01/10/2022
Ano 25
Número 1.290

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO

Carlos Trigueiro




A PASSAGEIRA

Carlos Trigueiro - CooJornal


Passava da meia-noite. Na contraluz dos lampiões da avenida Rio Branco, rajadas de vento faziam ou desfaziam sombras que pareciam vir da copa das árvores, dos becos, das marquises, de outras sombras. Sabe-se lá de onde vinham. Henrique reduziu a marcha do táxi próximo à boca do metrô, àquela hora sem engolir mais ninguém. Avançou na direção do Theatro Municipal. As calçadas vazias, a não ser de mendigos, desocupados e de fazedores de hora - agentes antieconômicos. Com o tempo ruim, pegar algum passageiro, só com muita sorte.

Henrique engoliu em seco sua frustração. Piscou os olhos cansados. O cenho acentuou-lhe as rugas. Pensou em tomar o rumo de casa. Ia acelerar. Em frente à Biblioteca Nacional, um vulto descia as escadarias. Henrique pisou leve no freio e margeou o meio-fio. Talvez alguém procurando táxi, pensou.

A mulher acenou com a sombrinha e completou: - Táxi!

Parecia apressada. Henrique se animou. Muita sorte, numa noite daquelas. Acionou o pisca-pisca e parou o veículo na beira da calçada. A mulher se aproximou em meio a lufadas de vento e borrifos de chuvisco. Era alta, ar de estrangeira. Vestia capa escura e tinha um lenço de cor indefinida protegendo os cabelos. Abriu a porta traseira e se acomodou no banco espaçoso. Usava uma bolsa grande, com alça dupla, dava para ver. Henrique acionou o taxímetro. A passageira bateu a porta e, antes que o veiculo partisse, soltou a voz meio rouca:

— Que vento! Boa-noite!

— Boa-noite, senhora, aonde vai?

— Cemitério São João Baptista!

— Humm! Esta bem, senhora..., desculpe..., humm, mas que noite horrível para velar alguém, desculpe perguntar, era pessoa da família?

— Não, não, é que..., bem, meu nome é Ingrid, sou um anjo da guarda e moro no cemitério há muitos anos, na segunda alameda, mas ando pensando em sair de lá. Por enquanto, pode me deixar na entrada principal, perto do Túnel Velho, aqueles portões nunca fecham.

Henrique não se alterou. Em quase cinquenta anos de profissão, transportara artistas, lunáticos, boêmios, prostitutas, drogados, bombeiros, médicos, bandidos, tiras, moribundos, cadáveres, gente boa e gente ruim. Preferia trabalhar à noite, o tráfego era mais calmo, embora houvesse outros riscos. Segundo sua filosofia de vida, no trabalho noturno a féria compensava. Importante é que soubera aliar a necessidade de trabalhar à experiência de lidar com o inusitado. Sabia que o mundo do taxista era assim. Podia acontecer de tudo. E o carro foi atravessando a neblina, vencendo a distância.

— Há anos não entro na Biblioteca Nacional, sei que fizeram reformas lá, parece que já tem computadores... disse Henrique, tentando dar um clima convencional à conversa.

— Vou lá toda quinta-feira, faço pesquisas visando o futuro; falta pouco, hoje me distraí e não vi fecharem as portas disse a passageira, já com voz metálica.

Henrique ouviu aquilo e, como não há donos da verdade nem do tempo, olhou discretamente o relógio no painel do carro. Passava da meia-noite. Aproveitou a iluminação junto ao semáforo para enxergar melhor. Olhou pelo retrovisor, empinando o pescoço discretamente como os taxistas sabem fazer. Deu para ver o rosto lívido da passageira, o lenço de cor indefinida na cabeça e a capa escura abotoada. Não resistiu:

— Desculpe, a senhora não viu apagarem as luzes da biblioteca?

— Não preciso de luz para ler, sou indiferente às luzes deste mundo — respondeu a mulher, enigmática.

Por uns instantes, Henrique ouviu o ronco do motor, o ruído cadenciado das varetas limpando o pára-brisas, o ato de engolir a própria saliva e o bater do coração. Queria mesmo era ouvir aquela voz interior que sabe de todas ascoisas. Respirou fundo, mantendo o carro em velocidade segura. As condições do tempo persistiam desagradáveis. Chuvisco e neblina se amalgamavam. Pouco a pouco, o sentimento do medo se entranhava na textura da noite. Medo. Henrique pousou os olhos na pequena imagem de São Cristóvão no painel. A voz da experiência se antecipou àquela interior.

O taxista calou-se. O silêncio, antes restrito à cabina do carro, cresceu e continuou crescendo pela pista. Um silêncio comprido, de três, quatro quilômetros. E não foi mais longe porque a passageira interrompeu:

— O senhor tem parentes lá?

— Humm! Onde?

— No Cemitério!

— Ah! Sim, bem, tenho sim, vários, acho que todos, mas faz tempo que não vou lá; aliás, faria qualquer coisa para não terminar ali, depois de tanta luta.Tudo é difícil, a senhora vê, a essas horas, na minha idade, ainda estou trabalhando. Se eu fosse mais novo, trocava de profissão.

— Devia fazer isso. Acho que falta pouco.

— Pouco para quê?

— Para o Cemitério.

— Ah! Sim, mais duas quadras, dobro à esquerda, pego a rua Real Grandeza e faço o retorno perto do Túnel Velho.

A passageira calou-se. Henrique sentiu desconforto. Ainda bem que a corrida estava chegando ao fim. Ficaria aliviado quando ela deixasse o táxi. Concentrou-se na direção. Os minutos pareciam intermináveis. De longe, dava para ver as escadarias da entrada do Cemitério São João Baptista. Ninguém subia, ninguém descia. ]anelas abertas e luzes frouxas nas capelas. Mas havia velórios, porque o anjo da morte é assíduo, laborioso e incansável. Henrique reduziu a marcha do carro e foi parando. Bem junto ao meio-fio. Fixou os olhos no taxímetro digital e disse aliviado:

— Pronto, senhora, a sua corrida deu...

Nem resposta, nem movimento no banco traseiro. Henrique, primeiro, olhou pelo retrovisor. Não achou a passageira no espelho. Virou o pescoço, cautelosamente. Tomou um susto. Nem sombra da mulher!

Certificou-se de que as portas traseiras continuavam fechadas e desviou o olhar para a escadaria. Viu a passageira já nos últimos degraus, lépida, bolsa a tiracolo, sombrinha fechada, lenço na cabeça. Mais não viu.

O taxista acendeu a luz interna do carro e procurou alguma coisa, qualquer coisa sobre o banco. Talvez uma cédula, qualquer compensação. Mas nada encontrou, nem mesmo gota ou respingo de chuva. Então, algo se manifestou dentro dele. Era aquela voz interior. Ouviu-a resignado. Tinha abandonado seus mortos. Abateu-se. Pensou. Repensou. Recobrou-se. Depois, acelerou no rumo de casa e foi se aninhar na solidão de sobrevivente.

Acordou cedo. No céu da manhã, nuvens baixas, alta umidade. No céu da boca, secura. Na terra, carros em velocidade, passantes indo, passantes vindo. Vento e chuva tinham amainado.

Henrique foi mesmo ao cemitério. Estacionou o táxi defronte aos grandes portões de ferro que dão para a rua General Polidoro. Comprou cravos e rosas num vendedor ambulante. Fez ramalhetes. Tomou cafezinho adiante. Caminhou pela alameda principal, persignou-se no Cruzeiro das Almas, dobrou à esquerda, depois à direita, de novo à esquerda.

Chegou ao túmulo dos seus mortos. Cumprimentou-os pelo nome, como se estivessem vivos — num evento em família. Desfez os ramalhetes e espalhou as flores por cima da tumba, balbuciando preces e, possivelmente, desculpas pelo atraso, ou melhor, longa ausência.

Sem-cerimonia, sentou-se sobre o túmulo e ficou em silêncio, pensando, quem sabe, sobre o seu futuro e inevitável endereço. Talvez precisasse ouvir de novo a voz interior. Pensou e pensou. Enfim, sentiu-se mais leve, fez o pelo-sinal, saudou os finados e partiu. Seria capaz de jurar que uma voz se insinuou: "Falta pouco."

Tomou o caminho de volta e pegou um atalho entre fileiras de sepulturas. Mal cruzara a alameda, avistou um anjo da guarda em granito sobre enorme mausoléu. Sentiu-se atraído irresistivelmente. Aproximou-se e viu uma capa escura desabotoada, bem como outros objetos aos pés do anjo. Chegando mais perto, a leitura da epígrafe na lápide esculpida em forma de livro quase o petrificou: "Ingrid Kraftenberg, 1890/1938."

Sem ninguém ao redor, o anjo granítico desceu do mausoléu, despojou-se das asas e falou com Henrique o que julgou apropriado, talvez um acerto de contas referente à noite anterior.

Em seguida, vestiu a capa escura, ajeitou o lenço de cor indefinida, pegou a bolsa com alça dupla, a sombrinha, estendeu a mão ao taxista, como a dar ou recolher algo, e se foi.

Henrique escalou o jazigo com alguma dificuldade, visivelmente encurvado sob o peso das asas. Tinha a expressão rígida, mas esboçou um sorriso marmóreo ao assumir a guarda do mausoléu.


(Em CONFISSÕES DE UM ANJO DA GUARDA –
Ed. Bertrand Brasil – 2008 – Rio de Janeiro/RJ).

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email carlostrigueiro28@gmail.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ




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