01/04/2022
Ano 25 Número 1.266
ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO |
Meu pai tinha o que
os americanos chamam de "perfect pitch''.
Traduzindo em miúdos: tinha ouvido absoluto - a
capacidade rara de ouvir e reproduzir
imediatamente um determinado som. Estudiosos dizem
que tal dom ocorre na proporção de um entre cada
dez mil indivíduos. Pessoas com esse privilégio
quando se dedicam à música podem alcançar níveis
excepcionais. Li em varias fontes sobre
compositores e artistas com ouvido absoluto,
dentre exemplos antigos e atuais: Beethoven,
Mozart, Chopin, Villa-Lobos, Bernstein, Claudio
Abbado, Frank Sinatra, Miles Davis, Ray Charles,
Julie Andrews, Ella Fitzgerald, Nat King Cole,
João Gilberto, Yo-Yo-Ma.
Voltando aos
parâmetros domésticos, meu avô era mestre de banda
militar. Pai de catorze filhos homens. Desde cedo
reconheceu em três deles pendores musicais e
ensinou-lhes o que sabia de Música. Meu pai logo
se distinguiu, pois tinha ouvido absoluto. Meu avô
colocou-o aos treze anos de idade na banda do
município. Aos vinte e tantos chegaria a mestre da
banda. Também era capaz de tocar com desenvoltura
qualquer instrumento de sopro: clarinete,
saxofone, trompete, flauta, flautim, trombone e
outros. Requisitado para tocar em coretos e festas
do seu tempo, ajudou na educação dos numerosos
irmãos graças ao que auferia com a música.
Quando éramos meninos, meu pai, afundado numa
rede, conseguia distinguir de olhos fechados a
presença de cada um dos seus quatro filhos pelo
nome, sem possibilidade de erro, antes mesmo de
abrirmos a boca para dizer-lhe alguma coisa. Acho
que transformava em notas musicais o leve ruído
dos nossos passos, ou talvez a sonoridade do ar
que deslocávamos: cada um ao seu modo.
E
achávamos incrível que ele descobrisse ninhos de
calangos, aranhas caranguejeiras e lacraias, no
forro do telhado, somente pelo bulício que os
bichos faziam. Em seguida, pedia-nos para ajudar a
enxotá-los a vassouradas. Alguns morriam, outros
fugiam, e tempos depois reapareciam, ocasião em
que o seu ouvido tornava a perceber os invasores.
E o ciclo recomeçava. Às vezes, ele gracejava com
minha mãe sobre o medo que ela estampava ao ver os
bichos. Vivos ou mortos. Acho até que ela temia
mais os bichos mortos. Sim. Minha mãe tinha pavor
da morte. Talvez por isso, meu pai lhe dizia, de
vez em quando e bem humorado, que os músicos não
morrem, apenas mudam de ritmo, pegam o seu
instrumento, identificam o tom e vão tocar noutras
bandas.
Pelo cantarolar ou assobiar de meu
pai conhecíamos a sua predileção por certas
marchas militares, modinhas da época, e um ou
outro cântico religioso. No fecho dessas
características paternas, ele também tinha memória
invulgar. Sabia de cor os autores, títulos,
capítulos, temas, salmos e versículos inteiros da
Bíblia. E era fácil apontar suas leituras
preferidas do Evangelho, pois as repetia bem
cadenciadas e no ritmo do vaivém que imprimia à
cadeira de balanço na sala. Desconfiávamos que ele
já tivesse musicado os textos bíblicos em foro
íntimo.
Quando lhe levávamos contratempos
peculiares à nossa idade, ele nos ouvia, ralhava
ou aconselhava, mas não raro acrescentava sua
frase predileta do Salmo 91: "... se ocorrer algum
passo perigoso com risco de te fazerem dano, seus
anjos te levarão em suas mãos.". De todas as
peculiaridades de meu pai com o seu ouvido
absoluto, essa frase me marcaria pelo resto da
vida.
Já a caminho dos noventa, numa noite
de Natal, creio que ele ouviu sinos de outras
dimensões, fechou os olhos e não mais falou. Uma
ambulância levou-o às pressas para hospital. Fui
seu acompanhante naquela noite. Mal o dia
amanheceu, vi que ele estava respirando
frouxamene, imóvel, de olhos fechados. Uma
intuição mandou-me dizer-lhe bem baixinho o Salmo
91. Eu também o sabia de cor. Na verdade, eu o
disse em silêncio, apenas movimentando os lábios e
sem nenhum som perceptível. Ao menos para mim.
Quando cheguei à frase "... seus anjos te levarão
em suas mãos" meu pai suspirou e se foi deste
mundo. O enterro foi à tardinha, em grande
comoção.
Dias depois do funeral,
conversando com minha mãe, tive oportunidade de
comentar os pormenores dos últimos momentos de meu
pai. E contei-lhe do Salmo 91 na hora derradeira.
Então, ela me disse que eu fizera muito bem, pois,
visto que ele era absolutamente musical, estava,
pois, só aguardando o tom. Eu, sem entender bem o
que ela dizia, perguntei: "Mas que tom? Eu não sei
de Música, apenas balbuciei o Salmo 91 e parei
naquela frase 'seus anjos te levarão em suas
mãos'."
Minha mãe pensou um pouco, e depois
respondeu serena: "Teu pai tinha ouvido absoluto.
Quando disseste a frase dos anjos, estavas dando a
ele o tom. "Mas, que tom?" - Repeti aturdido. Ela
continuou: "Meu filho, na percepção dos músicos,
deste o tom que ele aguardava, pois falaste de
anjos. Então não sabes que os anjos tocam
trombetas? Teu pai ouviu o tom das trombetas e
imediatamente o identificou. Em seguida, mostrou
na prática a sua velha teoria: pegou o seu
instrumento, mudou de ritmo e foi tocar noutras
bandas".
Olhei-a aflito e concluí que,
depois de tantos anos ouvindo aquele gracejo de
meu pai, minha mãe também perdera o temor da
morte. Então era isso. Ela também passara a
interpretar a morte como uma espécie de mudança.
Comovido, abracei-a e chorei tanto como se
estivesse no segundo enterro de meu pai. Apesar de
toda a minha admiração pelo seu dom musical
extraordinário, eu teria preferido mil vezes que
ele não tivesse percebido as trombetas dos anjos
indicando-lhe o último tom.
(Em "Ajuste de
Contos", Inédito)
(RT, 22 de fevereiro/2013) CooJornal nº 828
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias". Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
Direitos Reservados É proibida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do
autor.
|
|