Saibam quantos lerem esta fáBULA
ou dela notícias tiverem por qualquer meio nacional ou estrangeiro,
eletrônico, virtual, táctil, oral, mecânico, sensitivo, caritativo ou
eleitoreiro que em tempos pós-modernos há objetos, geringonças, módulos,
dispositivos, códigos de barra, tarjas, chips, lentes, imagens e tatuagens
que enxergam, espionam, filmam, gravam, mapeiam e se comunicam sem
limitações de meridiano, fuso horário, idioma, emoções ou decência; e que o
diálogo a seguir é de máxima boa-fé e corresponde à conversa de duas
tatuagens glúteas, aqui nomeadas Libélula e Dragão, sendo as ditas cujas
alocadas em usuários distintos conforme se verá:
Libélula — Finalmente o
casal aí dormiu de bruços. Estava sufocada nessa cama de motel. Prazer, sou
Libélula! E você é um Dragão! Mas por que foi tatuado no glúteo desse
marmanjo? Só vi dragões em espáduas, braços, ombros e peitoral dos clientes
dessa periguete aí que me usa, a Rosineide...
Dragão — Oi, Libélula,
prazer! Fui tatuado no glúteo do Mário Costa, esse marmanjo que dorme aí,
por causa de uma promessa que ele fez. Mário era um escritor nacional
pobre, honesto e infeliz até que topou com a Dalva, uma periguete emergente,
num bar de Ipanema. Desde então, há coisa de dois anos, aquele encontro
mudou o destino dele. Hoje, Mário Costa é um escritor rico, não exatamente
feliz, mas, bem, promessa é promessa...
Libélula — Valeu! Adoro
histórias que falam em promessas! E como já vi que sou uma tatuagem mais
antiga do que você, não precisa me dizer que nós, tatuagens, refletimos o
que se passa no corpo e na alma dos nossos usuários. Vamos lá, desembucha o
resto da história.
Dragão — Bem, o Mário Costa
publicara catorze livros nos últimos vinte anos, porém não vendia nada. Os
livros ficavam encalhados nas livrarias ou voltavam às editoras que os
reduziam a papel picado para reciclagem.
Libélula — Mas todo mundo
sabe que ficção nacional não dá pra competir com a realidade exuberante do
Brasil e, pior ainda, não tem a menor chance de enfrentar os tijolaços de
grana e marketing da ficção estrangeira!
Dragão — Foi o que
aconteceu. O coitado do Mário Costa, desiludido com a venda ínfima dos seus
livros, bem como decepcionado com o silêncio das mídias sobre a sua arte, e
descrente da opinião e dos conselhos de jornalistas, editores, críticos e
agentes literários sobre como escrever um Best-seller, acabou recorrendo ao
sobrenatural por sugestão da periguete Dalva.
Libélula — Já entendi, o
recurso ao sobrenatural deu certo, e aí o Mário cumpriu a promessa de mandar
tatuar um dragão no seu grande glúteo direito.
Dragão — Mas foi passo a
passo. Primeiro, no bar de Ipanema, o Mário e a periguete tomaram umas
caipirinhas. Depois foram pro motel, assim como a Rosineide faz, deram uns
tapas num baseado noite a dentro, trocaram beijos, afagos, sabe-se lá mais o
quê e, finalmente, dia claro, vieram as lamúrias dele.
Libélula — Estou
curiosíssima, me conta logo os “finalmente”!
Dragão — Bem, o marmanjo
desabafou com a periguete que os seus livros não vendiam e viravam papel
picado. Então ela aconselhou ao Mário uma sessão de tarô com certa
cartomante da periferia, Madame Chateaubriand, que sabia das coisas e
poderia ensinar-lhe como abrir caminhos para o sucesso.
Libélula — Que história
fascinante! Estou morrendo de curiosidade! Ele foi mesmo ver a cartomante? E
o que ela disse pra abrir os caminhos dele?
Dragão — Bem, o que vou te
contar aconteceu antes do meu nascimento. Eu sei de tudo porque ouvi a
história da boca do escritor em rodas de amigos. E, claro, estou entranhado
na sua pele, sei seus segredos, emoções e desejos.
Libélula — Mas é para
esconder e desvendar segredos da alma alheia que nós, tatuagens, existimos!
Conta logo como foi a tal seção com a cartomante!
Dragão — A Madame embaralhou
as cartas, mandou o Mário cortar o baralho em sete montes e, em hora e meia
de sessão, virando e interpretando as cartas, deu o resultado da consulta.
Libélula — Morro de
curiosidade! O que foi que ela disse afinal?
Dragão — Ela disse que o
Mário escrevia direitinho, tinha bom vocabulário, estilo clássico, mas que
abordava temas sérios, coisas que faziam pensar, e que isso hoje está fora
de moda, pois as tecnologias resolvem tudo. E sugeriu que o Mário escrevesse
histórias óbvias, com títulos inconvenientes, enredos banais mas escabrosos,
personagens pornográficos ou violentos, até citou o Nelson Rodrigues, pois o
aconselhou a adotar o estilo “óbvio ululante” do erotismo e da sensualidade.
Mas frisou que tudo devia ser escrito com muita frescura e, no fim das
histórias, que ele colocasse a tal “água com açúcar”.
Libélula — Mas isso é lógico
demais, não tem nada de sobrenatural!
Dragão — Calma! Agora vem o
esotérico da história. A cartomante mandou o Mário assinar os seus futuros
livros com o nome modificado, parecendo estrangeiro, e sugeriu virar o “M”
de Mário de cabeça pra baixo, ficando um “W”, mudar o acento agudo do “a” de
Mário para um trema, assim “ä”, trocar o “i” por “y” e colocar mais um “o”
no final do nome para ficar “Wäryoo”!
Libélula — E o que ela
sugeriu com o “Costa”?
Dragão — A Madame disse pra
ele escrever “Costa” assim: “Köztta”.
Libélula — Então, o Mário
Costa passou a assinar Wäryoo Köztta?
Dragão — Exatamente! E assim
Wäryoo Köztta escreveu em três meses o seu décimo quinto livro que em menos
de um semestre vendeu 5 milhões de exemplares, tem várias propostas para
teatro, cinema e mini-série de TV.
Libélula — Mas e a promessa
de tatuar o Dragão no grande glúteo?
Dragão — Calma! A
cartomante, além de cobrar caro a consulta, exigiu um ritual satânico para o
Wäryoo Köozta fazer quando terminasse de escrever o novo livro. Mandou-o
imprimir cópias dos originais e tocar fogo em tudo, página por página, numa
frigideira untada com azeite extra-virgem e pimenta rosa numa noite de lua
cheia. Feito isso, instruiu-o como mastigar e engolir as cinzas do estranho
refogado com uma colher de sopa antes do amanhecer.
Libélula — Mas onde entrou a
promessa do Dragão?
Dragão — A cartomante disse
que a digestão do Wäryoo Köosta passaria a ser muito difícil depois do
ritual de queimar as páginas e comê-las, mas esse transtorno lhe daria
inspiração genial para o título do livro. E se desse tudo certo, como deu,
exigiu, como promessa, que ele mandasse tatuar um dragão cuspindo fogo no
local do corpo mais apropriado para neutralizar as reações fisiológicas
provenientes do estranho ritual.
Libélula — Estou pasma!
Afinal qual é o título desse livro que arrebentou o mercado e vendeu
milhões!
Dragão — Vais entender tudo:
o desconforto digestivo previsto pela cartomante deu ao Wäryoo Köosta
inspiração pro literalmente estrondoso livro que está arrebentando o
mercado: “50 Puns de Cinzas”.
Moral pós-moderna: O sobrenatural tem sua
própria tecnologia.