Dia 28
A página do dia 27 também estava preenchida pelo mesmo sujeito - acho que é
homem; ou será mulher? Abuso igual só nos regimes totalitários. Vou fazer o
jogo dele - ou dela. Verei que vai dar. Marcho. Em frente. Mais que isso: danço.
Como Reinaldo Glière na Russian Sailor's Dance. Sou assim mesmo. Sempre fui. Sempre cheguei
à frente. Neurônios em tempo -
prestissimo.
O tal sujeito (ou sujeita) hoje vai ter uma surpresa. Por que razão bisbilhotar todos os meus egos? Vou
contra-atacar.
A empregada já foi embora. Primeiro encho a banheira com água morna. Ponho
aquelas bolas azuis que trouxe de Paris mês passado. Relaxo o ambiente. Ligo o
som:
In the Steppes of Central Asia, do Borodin. Vou à estante e
recolho os 25
volumes do Diário. Como pesam, até parecem gente. São necessárias não sei
quantas mãos. Pronto. Todos sobre a banqueta do banheiro. Agora, um a um,
mergulho-os na banheira:
"Tibum!" As lombadas carmesim contrastam
com o anil.
"Tibum!" vezes 25 é igual a:
Arff! Estou sufocando,
caramba, tenho que sair
daqui... Que sensação...
glub, glub,, glub..., tenho que conseguir sair
daqui, chegar ao tele...fone e pedir socorro. Maldito diário, mal-Di...
DIA 29
Felizmente
permaneci sobre a mesinha de cabeceira. Telefonei pra polícia (polícia no Rio de Janeiro
é com "p" minúsculo), mas o plantonista disse que não atendiam
trotes. Em seguida chamei uma ambulância, mas disseram que as quatro viaturas
disponíveis, das 26 da frota original, haviam saído
pra atendimentos de emergência. Chamei o porteiro, mas ele ficou com
medo de se meter em complicações com a polícia. Telefonei pro síndico do
prédio, mas ele havia ido a uma reunião do Lion's. Bati à porta do vizinho,
mas a empregada pensou que eram assaltantes e não quis cooperar. Coloquei de
novo o Borodin pra me acalmar... Fui à esquina e chamei um assaltante de
plantão que me atendeu pronta e prestimosamente. Subiu ao apartamento, fez
respiração boca a boca na "Gi". Molhou a cama toda. Tudo ensopado de azul.
Praticamente ressuscitou-a. Troquei os lençóis e coloquei-a de bruços
pra liberar algum resquício líquido dos pulmões. O assaltante, um sujeito até
educado, levou algumas joias, aproveitando a oportunidade. Também levou o
relógio e a bolsa de sempre. A "Gi" vai ter de comprar mais uma
dúzia de cada.
Não se interessou pelas obras de arte. Por sorte era ex-enfermeiro e havia
trabalhado
em hospitais do Estado - muito antes da agonia estatal brasileira.
Interessante que só consigo lembrar-me dos assuntos recentes. Acho que a água
diluiu a memória dos 24 volumes precedentes. Pra evitar complicações com a
polícia, teletonei pra redação do jornal a fim de que alguém viesse recolher
a matéria preparada pela "Gi" para o dia 29. Um indivíduo mal-humorado
respondeu que só daqui a quatro anos, pois estávamos em bissexto. Não sei se a
"Gi" vai aguentar esperar todo esse tempo. Por via das duvidas estou aqui na
estante... pacientemente. Parece que meu caso é uma especie de metempsicose,
ou como a "Gi" costumava dizer: "inflação da personalidade" Assinado: "Di"
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carlostrigueiro28@gmail.com
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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