10/07/2014
Ano 18 - Nº 899

ARQUIVO
CARLOS TRIGUEIRO
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Conjecturava agora em bases reais.
"Precisava preparar-se para a aposentadoria. Tinha lido muitos estudos sobre
como o assunto era tratado nos países desenvolvidos. A fase de preparo para o
retirement, como diziam os americanos. Ou andare in pensione na classificação
dos italianos. Na Alemanha e no Japão havia até cursos preparatórios. Conhecia
o assunto na teoria. Agora, tinha de aprender na prática, pois estava chegando
sua vez. Logo ele que, há cinco anos somente, nunca havia pensado em como
seria o day after - a vida de aposentado. Em verdade, a maioria dos indivíduos
faz a vida social em volta do ambiente de trabalho, dos colegas de trabalho.
Os segmentos da sociedade que as pessoas frequentam se relacionam com o
trabalho. A maioria não constrói ambientes alternativos. Não frequenta outros
grupos, nem interage com pessoas de outros ambientes e atividades. Sim,
precisava diversificar-se cultural e intelectualmente. Viajar pelo interior e
sertão, ver a zona do Pantanal, as cidades coloniais de Minas Gerais, o
cerrado goiano. Cruzar o Atlântico. Visitar museus. Sorver a cultura da Europa
clássica. Frequentar amostras e exposições de assuntos variados. Ver arte
moderna, admirar pintura impressionista, esmiuçar a arquitetura
pré-colombiana, saber de música barroca, de escultura contemporânea, de
historia das artes marciais. Devia participar de movimentos pró-ecologia, de
renovação do chamado teatro novo, ou de recuperação do cinema de arte, ir a
concertos beneficentes, a shows de música pop -, lógico que não dava para
fazer tudo! Mas ampliar a percepção do mundo era absolutamente necessário, a
fim de que não ficasse escravo do trabalho, do ambiente do trabalho, dos
grupos do trabalho e da lógica do trabalho. O mundo é muito rnaior do que o
trabalho. A vida é para ser vivida em sua amplitude global. Ars longa, vita
brevis! medite-se sobre a filosofia de Sêneca. Bem a propósito. Podia encher
páginas e páginas de adágios latinos, mas isso seria de grande valor quando
aposentado? Teria, alias, algum valor? Qualquer vicissitude? De fato, isso era
quase para filosofar; o homem raramente durante a vida é totalmente livre. É
sempre escravo da ordem e por que não da Lei? E ele, um juiz, estava pensando
assim, isso mesmo, renegando princípios de ordem, de juridicidade, até mesmo
alguns princípios de civilização. Por que isso? Talvez discutisse,
naturalmente, anseios de sua alma mesma, porque a lógica da vida está acima da
lógica dos homens. A lei era um código interpretativo da lógica dos homens e,
portanto, num nível inferior à lógica da vida - que está no plano divino."
E continuou monologando intimamente. "De repente, aparecera aquele
processo em juízo. Um funcionário público - como eu - rebelara-se contra a
perda do dia a dia causada pela aposentadoria; queria reintegração - se se
podia chamar assim - no fundo, desejava voltar a trabalhar e, tão estranho
quanto pudesse parecer, o advogado outorgado pelo reclamante mencionava uma
expressão que ainda não vira antes, dizendo que o homem perdera o dia a dia.
De resto, o outorgante era o tal sujeito, o homem que perdeu o dia a dia.
Aquele assunto tinha muito a ver comigo mesmo, a pessoa Bartholomeu, não com o
juiz, claro. À luz da lei, era sutil julgar o caso, difícil era julgar como
ser humano e, ainda mais difícil, quando eu mesmo começava a ser assaltado por
questão semelhante. Precisava de tempo para pensar. E o tema, por si só,
inspirava bela discussão."
Pegou o cachimbo, encenou longa pitada e
soprou outra aura de fumo imaginária, que foi crescendo, crescendo, passou
pela vidraça da janela semiaberta, extrapolou os quadrantes do rio Madeira e
foi aumentando, aumentando, ganhou os céus e perdeu-se numa encruzilhada da
Via Láctea. Era hora de reconciliar-se com o sono. O dia seguinte, com
certeza, aportaria outros enfoques ao interessante questionamento. Colocou o
despertador sobre a mesinha de cabeceira, pronto a disparar bem cedinho.
Enquanto se movimentava nesses preparativos, assaltou-lhe ainda uma vez a
imaginação. Tentou vislumbrar como seria fisicamente - talvez de constituição
débil, pensou - o tal sujeito que contestava a perda do dia a dia. Porém, os
favos inebriantes do sono já lhe entorpeciam os estímulos - e ele, um juiz
federal, ao olhar os ponteiros do relógio, sentiu-se também frágil ao ver que
se escoara um dia a mais no processo vital - um juiz tinha o dia a dia como
todo mundo. Beijou a esposa já adormecida e enfiou-se sob os lençóis. Para o
novo dia alvitrava um dia a dia descompromissado. Sim, pela manhã, trataria de
ter uma jornada além das grilagens do dia a dia. Precisava soltar-se. E
despencou nos abismos da noite. (continua)
Do livro "O Clube dos Feios",
Editora 7 letras, 2ª edição, 2013.
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carlostrigueiro28@gmail.com
Carlos Trigueiro é escritor e poeta Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
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Direção e
Editoria
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