Bruno Kampel
solidariedade
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Sinto uma enorme dificuldade em defender a vida dos botos, dos pelicanos,
dos macacos, dos ursos e de todas as espécies em vias de extinção e/ou vítimas
de acidentes do tipo do que ocorreu há alguns anos frente às costas dos
Estados Unidos (que não foi o primeiro nem será o último). E essa minha
dificuldade não existe porque ache que não devam ser protegidos - porque sim
acho que devam ser protegidos -, mas pelo fato de que nós, o Homo Sapiens
"primeiro e único", ficamos horrorizados ao ver um pato morrendo no meio de um
mar de óleo, ou uma baleia sendo criminosamente arpoada pelos pesqueiros
japoneses nas costas australianas, e assumimos como lógico - ou "nem estamos
aí" - que milhões de seres humanos morram de fome, e que muitos mais milhões
morram de sede (!), e que o continente africano esteja agonizando por obra e
graça do maior depredador: o Homem.
Enquanto o Ser Humano como um
grupo animal em perigo, e dentro desse grupo a Infância em particular; e a
Educação pública gratuita e obrigatória; e a Saúde das classes menos
favorecidas, não forem o objetivo prioritário dos dinheiros públicos,
fodam-se, mil vezes fodam-se, os botos e os pelicanos e as baleias e os
pirilampos em vias de extinção.
Desculpem o desabafo. É que a vida me
ensinou que infelizmente um passarinho morrendo no meio de uma poça de óleo
num mar a milhares de quilômetros de nossa casa e de nossa vida, é transmitido
em todos os noticiários e nos sensibiliza mais do que uma criança desamparada,
abandonada, abusada, maltratada, desnutrida, faminta, dormindo numa cabine de
telefone ao lado de nossa casa, e que essa situação pandêmica não merece nem
uma linha na página 756 do jornal de domingo, a não ser para alertar sobre o
perigo que essas crianças representam para a segurança dos bem alimentados,
dos bem tratados, dos bem educados.
Sim, investimos com toda razão o
nosso sentimento de solidariedade na defesa da vida de um marreco que corre o
risco de se extinguir nas selvas do Peru, ou de um crustáceo qualquer cujo
habitat no fundo do golfo do México está ameaçado pela maré de óleo que emana
sem controle, mas continuamos a gerar miséria humana sem que trema a nossa
consciência. Gastamos mais em tanques e bombas que em escolas e hospitais,
como se fosse lógico. Nas guerras geramos mais vítimas civis pelos efeitos
colaterais, do que de inimigos contra os quais lutamos.
Que me
desculpem os bichinhos, mas se não há suficientes recursos para tudo, que o
Ser humano seja o objetivo primordial do esforço nacional, internacional e
multinacional. Do que sobrar (e sobraria se as verbas fossem integramente
destinadas a atender os objetivos, e não que uma parte viaje para o bolso dos
políticos), então sim tratar desses efeitos devastadores que infelizmente
acompanham o progresso industrial e a cobiça impudica dos regentes do mundo e
dos sátrapas de turno.
Que me desculpem aqueles que defendem com
sinceridade o direito de flora e fauna de não caírem vítimas do bicho homem
(eu também ME peço desculpas), mas não posso ser um ecologista que lembra da
lombriga da Tanzânia e ignora a criança das ruas da América Latina, da Índia,
do Paquistão, do Harlem, da Polônia e da Bulgária e da Ásia, que continuam a
carecer de alimentação básica, de atenção sanitária primária, de educação, de
futuro.
Sim, desculpem.
Bruno Kampel é analista político, poeta e escritor.
bruno@kampel.com
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